No afã de fazerem esquecer o passado, os ex-comunistas italianos, reunidos em recente congresso “temático” em Roma, foram impiedosos com os velhos símbolos. O azul expulsou da sala o vermelho, as bandeiras com a foice e o martelo cederam lugar a fotos gigantes em que duas crianças constroem com blocos de madeira um futuro “seguro e normal” para a Itália.
Será talvez uma astuta jogada de “marketing” eleitoral, indispensável para expressar a mudança e a ruptura com o passado. Não se pode, porém, deixar de perguntar quanto da força do velho comunismo italiano e do atual Partido Democrático da Esquerda (PDS) não vinha precisamente dessa mística revolucionária de Gramsci e Togliatti, de Berlinguer e até do socialista Pietro Nenni, líder da Brigada Gabribaldi na Guerra Civil espanhola?
Lembro, criança nos anos 40, o fascínio que sentia pelas aventuras dos comunistas da clandestinidade e da Resistência, pelos mártires como Ernst Thaelmann, torturados até a morte pela Gestapo, pela defesa de Dimitrov no processo do incêndio do Reichstag.
A tradição carbonária do início do século 19 revivia nas missões misteriosas dos agentes do Komintern que povoavam as páginas de “Do Fundo da Noite”, de Jan Valtin, emprestado da Biblioteca Municipal de São Paulo. Como apagar da história emocional deste século o “pathos” das vidas revolucionárias narradas por Koestler, um dos contemporâneos do Komintern?
Pensava nisso tudo a propósito do congresso do PDS quando me chegou do Brasil a devastadora notícia da morte de um desses velhos militantes, para mim o mais querido e próximo. Nascido no Brás, na rua da Alegria, de família de imigrantes pobres, chegou como autodidata a contador e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
Dirigente comunista já em 1935, viveu a experiência da clandestinidade e da prisão durante a repressão do Estado Novo. Por pouco não foi fuzilado no presídio Maria Zelia, numa execução camuflada em fuga frustrada, um dos nefandos antecedentes do Carandiru que a covardia das anistias brasileiras sepultou no esquecimento.
Sua idealista fé na possibilidade de uma sociedade menos injusta deixava entrever que nele o materialismo dialético nunca passara de superficial ferramenta intelectual para compreender e mudar o mundo. Sua vida de abnegação, a renúncia até tarde ao casamento, a fim de poupar a uma esposa a angústia e os temores de que não pôde preservar a mãe e as irmãs, sempre me fizeram pensar na vocação dos cristãos da catacumba para viverem a virtude em grau heróico, como quer a definição de santidade.
Contou-me, certa vez, como começara a deixar a militança. Foi na prisão, onde não suportou assistir ao tratamento surdo de silêncio e hostilidade que o partido decretaria contra um dos companheiros culpado de ter afrouxado sob tortura.
A compaixão e sua profunda humanidade se rebelavam contra a sentença, ainda que justa. Desprovido de vaidade, culpava a própria fraqueza por não conseguir elevar-se à altura sobre-humana do revolucionário intransigente, ideal supremo do qual falava com reverência.
Afastou-se do partido sem romper com ele. Descobria o que já lhe andava no fundo da personalidade, a não-violência, o pacifismo, a caridade. Tornou-se espírita, em parte, acho, por não poder conceber a possibilidade de condenações eternas. Após 1945, converteu-se em presença constante e benfaseja junto a milhares de pessoas humildes que ajudou a aprender a viver e a sofrer.
A influência dos seus conselhos e dos seus livros foi decisiva em minha vida. A pequena biblioteca que reuniu no esquálido bairro operário foi minha primeira janela para o mundo da leitura. Embora afastado da militância pela recusa da violência, conservou-se fiel à cerrada argumentação estalinista.
Por isso, discutíamos muito sobre a URSS, o pacto Molotov-Ribbentrop, os preconceitos antiintelectuais do Komintern. Aos meus olhos, nunca deixou de aparecer como a mais pura encarnação daquilo que os ex-comunistas modernizadores correm o risco de renegar, a vocação do verdadeiro revolucionário, não o “aparatchik” triunfante e cruel dos Gulags e dos processos de Moscou, mas o militante operário anônimo, os “partigiani” e os mártires da repressão fascista.
Não sei se ele chegou a ler meu primeiro artigo sobre o congresso do PDS e ignoro como teria reagido à reviravolta do comunismo num país a que ele e eu nos sentíamos ligados pela comum tradição familiar. Teria gostado, acho, da ênfase no diálogo com o adversário, do elogio que, a exemplo de Bobbio, o líder do PDS fez da “`mitezza”, a brandura, a bondade de alma, ele que se inspirava no exemplo daquele que era “manso e humilde de coração”.
Penso, sobretudo, que também não terá acreditado que o naufrágio do comunismo real represente a conformidade com a injustiça e com a desigualdade. Essa atitude, essência da mística revolucionária, não morre com o comunismo, como não desaparece com a morte de um homem excepcional que a encarnou numa longa vida, meu querido tio Ignácio Giovini, a quem dirijo o comovido adeus de todos os que nele aprenderam a ver o exemplo de que é possível ser fiel à luta pela justiça e à eterna utopia da igualdade sem perder a humanidade e a sabedoria do coração.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 29/07/95.