A angústia do vazio e da perda de sentido da vida, o absurdo da condição humana são as características deste momento em que uma era histórica chega ao fim. O artigo no qual eu lembrava essa afirmação de Paul Tillich saiu no mesmo domingo em que o caderno Mais! publicava o resultado da consulta sobre quais eram os dez grandes poemas do século. Por unanimidade coube o primeiro lugar a “The Wasteland”, de T.S. Eliot, que Tillich considerava exemplar na descrição da civilização em decomposição, na falta de direção, na coragem do desespero diante do desaparecimento do sentido na terra devastada.

“The Courage to Be”, pequeno tratado da angústia contemporânea, data do auge do existencialismo. Meio século mais tarde, os poetas consultados pela Folha continuavam a identificar-se com o mesmo texto poético, sugerindo que o problema é hoje tão atual como em 1952.

O teólogo luterano enfrentava a questão com a chave da coragem de ser, isto é, a auto-afirmação a despeito de tudo o que tende a impedir o ser de afirmar-se a si próprio. Mas a busca de sentido existencial pode empreender-se em vários planos. Um deles é explorar se será possível superar a produção meramente econômica a fim de chegar à produção de sentido. É o que indaga meu amigo Jean-Baptiste de Foucauld, ex-comissário geral do Plano na França, no livro “Une Société en Quête de Sens” (“Uma sociedade à procura de sentido”).

Ele parte da constatação de que as sociedades tradicionais tinham três características: 1º) um sentido coletivo muito forte que se impunha aos indivíduos; 2º) um vínculo social igualmente muito forte no interior de cada sociedade; 3º) trabalho em geral disponível, mas encarado como alienante, não libertador, a ponto de que o “status” invejável era não precisar trabalhar e poder viver de renda.

A partir daí, a modernidade introduziu três valores que se substituíram aos precedentes: a liberdade individual nos domínios da opinião, da política, da economia; a abertura e competição das sociedades umas com as outras e enfraquecimento do elo social; o progresso técnico que transforma profundamente o emprego.

Quanto ao lugar da economia na sociedade, sua evolução passa também por três etapas. Na primeira, a economia é relativamente controlada, funciona de modo pouco autônomo e integrada em sistema mais amplo. Na segunda, a economia adquire maior autonomia, embora preserve sua significação fundamental, que é diminuir a escassez e aumentar o bem-estar.

Na última etapa, na qual nos encontramos, a economia passa a dominar a sociedade, a política e o homem. Em torno dela, tudo se apaga: a religião perdeu sua importância, as grandes ideologias político-revolucionárias se desintegram, desaparecem todos os demais sistemas capazes de imprimir sentido à vida social. Aparece a ameaça evocada por Jospin, de a economia de mercado criar uma “sociedade de mercado”, em que tudo esteja à venda.

Produz-se então fenômeno curioso: a própria economia começa a perder seu sentido, que era reduzir a escassez e aumentar o bem-estar. Por um lado, para os beneficiados, deixou de existir escassez dos bens fundamentais como a comida e o vestuário: o consumismo passa a inventar necessidades cada vez mais supérfluas. Por outro lado, a fim de manter as condições para essa acumulação excessiva, a nova economia, em vez de aumentar, principia a destruir o bem-estar de parcelas crescentes da população, antes assegurado pela legislação e proteção sociais. A economia já não possui muito sentido, mas tampouco existe bastante sentido fora da economia.

Sentido, para De Foucauld, é o que vale a pena, aquilo que justifica o esforço, o sofrimento, tudo o que vale, o que tem valor, embora possa não ter utilidade econômica.

Restituir o sentido original perdido pela economia é fazer com que ela seja capaz de satisfazer os três principais tipos de necessidades humanas: as materiais, as de relações entre as pessoas, as espirituais (necessidades de cultura, arte, meditação, interioridade, todo o domínio do simbólico). Ora, a economia satisfaz mal certas necessidades fundamentais e não atende às demais porque prefere estimular necessidades artificiais em detrimento das de ordem relacional ou cultural.

A fim de poder dar atenção a essas últimas, é preciso dispor de tempo, ter a possibilidade de ser o senhor do próprio tempo, de dedicá-lo a prioridades que variarão segundo os indivíduos, de poder escolher como e em que utilizar o tempo.

Decidir o que fazer do tempo escolhido é evidentemente parte da solução ao problema do sentido: quem escolhe como empregar o tempo está dando sentido e orientação ao tempo e à vida. Aqui, porém, a questão do sentido se relaciona a outra questão da nossa época, a do trabalho. Em lugar da questão social do passado, enfrentamos hoje o problema do desemprego de massa, gerando a exclusão e a marginalidade.

A solução ao desemprego passa, em parte, pela possibilidade de escolher como empregar o tempo, condição para partilhar o tempo de trabalho, as oportunidades de emprego produtivo. Pois alguns não têm tempo (para a família, os amigos, a cultura), devido ao excesso de ocupações, enquanto outros dispõem de tempo de sobra, em razão do desemprego, e se desesperam por não saber o que farão do seu tempo vazio amanhã, depois de amanhã. A exclusão e a marginalidade não se combatem, contudo, como se lutava antigamente contra a espoliação. É tipo de combate que exige de nós engajamento moral e pessoal maior, pois depende da recuperação do vínculo social. Crise do trabalho, crise do sentido, crise do vínculo social se encontram nesse ponto de desafio.

Trata-se do desafio de dar sentido à economia e à sociedade. Vale a pena enfrentá-lo, no espírito da frase de Kierkegaard, profeta das nossas angústias: “Atrever-se, assumir riscos, é perder o pé momentaneamente. Não arriscar-se é perder-se a si próprio para sempre”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 09/01/2000.