Passa sempre em branca nuvem o aniversário da abertura dos portos em 28 de janeiro de 1808, queixa-se meu amigo Carlos Tavares de Oliveira. Se não alertarmos em tempo, o mesmo ocorrerá daqui a dois anos, no bicentenário dessa data, sem exagero o início da modernidade no Brasil, e não só na economia.

Estamos entre dois centenários, embora de significado e alcance distintos. O primeiro é o dos portos; o segundo, em fins de fevereiro, os cem anos do Convênio de Taubaté, primeira experiência de valorização do café. Ambos demonstram o artificialismo de querer separar a história econômica da história política.

A abertura dos portos não só revolucionou a economia e o comércio; principiou processo que tornou a independência inelutável. Isso não escapou a seu principal promotor, José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu, para o qual a abertura era a suspensão, diriámos hoje, o fim, do sistema colonial. É verdade que o conservador Cairu, primeiro tradutor de Burke e Adam Smith para o português, temeu que o radicalismo inicial de 1822 provocasse no Brasil a repetição da sangrenta Revolução do Haiti, só se reconciliando com a independência quando o príncipe-herdeiro se pôs à sua frente.

Taubaté, por seu lado, selou, mediante a eleição de Afonso Pena, a aliança oligárquica de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, que iria dominar toda a República Velha. A ideologia que inspirou essas duas políticas foi não apenas diferente mas oposta, o intervencionismo da valorização cafeeira repugnando liberais como Joaquim Murtinho e até o moderado Rodrigues Alves. Sobre o convênio, publiquei na coluna em 27 de fevereiro de 2005 o artigo “99 anos de crise”. Sinto-me, assim, eximido por ora de voltar ao assunto.

Em câmbio, creio que a abertura dos portos merece duas ou três reflexões. Raras, raríssimas medidas tiveram impacto transformador tão totalizante na história brasileira. De uma penada, a Carta Régia liquidou o exclusivo monopólio do comércio pela metrópole, essência do regime colonial mercantilista, que vinha das viagens de Vasco da Gama e Cabral. De repente, uma colônia entorpecida no isolamento e no atraso abria-se a capitais e empresários novos, mudava de hábitos de consumo, de costumes, passava até a comer com talheres, importava vestuário, métodos de negócio, idéias, modas, novidades de todo tipo, algumas ridículas como os patins para gelo! O insólito, talvez único, apesar de não destacado pelos historiadores, é que decisão de tamanho alcance tenha sido tomada quase sem debate, uma semana apenas após o desembarque do príncipe-regente dom João na Bahia e antes da chegada de seus principais conselheiros. Quando se pensa no que custa hoje tomar decisões insignificantes, vê-se que o sábio príncipe deveria ter boa dose do que San Thiago Dantas chamava de “inteligência positiva”, definida como a capacidade de tomar decisões (acertadas, é claro).

Como foi possível tal milagre? Em parte, por ser a medida inevitável, já que não fazia sentido manter o monopólio quando a metrópole estava ocupada por Napoleão e a Corte em fuga só poderia sobreviver graças aos recursos do comércio. Mas todo milagre precisa de santo e o nosso foi Cairu, que, em três ou quatro dias, menos do que se precisa para tirar carteira de identidade ou passaporte, conseguiu converter o futuro Conde de Aguiar e, por meio dele, o bonacheirão regente. Professor de grego, latim, hebraico, filosofia moral e política como seu mentor Adam Smith, comercialista que Tullio Ascarelli julgou dos maiores, se não o maior, do seu tempo, Silva Lisboa foi também o primeiro professor de economia política e primeiro tratadista dessa matéria em língua portuguesa. Mereceria ser o anjo tutelar dos economistas brasileiros, que nem sempre andaram tão inspirados como ele.

A presença, na abertura do país aos ventos da transformação e da modernidade, de um intelectual com as “idéias no lugar”, valoriza o papel da inteligência e do conhecimento no processo da independência.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 05/02/2006.