A decisão de manter o calendário original da Alca permitiu-nos ganhar algum tempo. Mas ganhar tempo só tem sentido se algo de útil se faz com o tempo que se ganha. Nesse caso, o melhor uso possível para esse tempo reconquistado é utilizá-lo para tentar ao menos equilibrar, de alguma forma, o jogo que começou fortemente desfavorável para nós, já na agenda aprovada.
O desequilíbrio mais grave é a séria ameaça de que o acordo relegue aos 15% do intercâmbio, que, segundo o artigo 24 do GATT, podem ficar de fora da área de livre comércio, todos ou quase todos os setores de interesse do Brasil no mercado americano: o antidumping e as medidas compensatórias de subsídios contra o aço, os calçados e outros produtos, os subsídios ou os créditos à exportação agrícola, a eliminação de barreiras em suco de laranja, açúcar, tabaco etc.
Em outras palavras, entrariam na Alca as exportações onde temos fraco ou nenhum poder competitivo, e ficariam excluídos produtos em que somos competitivos _aqueles com que os americanos têm problemas. Aparentemente, o argumento em favor da exclusão é que temas como antidumping ou agricultura seriam de natureza global e não hemisférica. Custa a crer que alguém tenha levado a sério tal argumento num quadro negociador em que se aceitou incluir a propriedade intelectual, os investimentos, os serviços, as compras governamentais, a política de concorrência, o comércio eletrônico. Se esses não são temas globais por excelência, qual seria então o critério para assim considerar um assunto a fim de excluí-lo do âmbito hemisférico?
Se for a existência de um acordo na OMC, seria então o caso de suprimir a propriedade intelectual, os serviços e as compras governamentais, já cobertos por disciplinas da OMC (é verdade que o último acordo desses citados só logrou a adesão de pouco mais de 20 dos 140 membros da organização, porque pouco teriam eles a ganhar em aderir a qualquer acordo dessa natureza, o que vale também para a Alca).
Se, por outro lado, a razão é que já estão em curso na OMC negociações nesse momento, como ocorre com a agricultura, então, pela mesma lógica, seríamos também obrigados a excluir os serviços, cujas negociações encontram-se até mais avançadas. Não se explicaria, porém, por que motivo deve-se renunciar a tratar de antidumping, área em que não só não há negociações em curso na OMC, isto é, em nível global, mas tampouco se detecta disposição alguma de encetá-las, como se verificou em Seattle.
A não ser que, no fundo, o critério seja aquele preferido pelos cínicos: o que é meu, é meu; o que é seu, é negociável… Como não se deve fazer injúria tamanha aos participantes, só pode tratar-se de alguma razão que nos terá escapado. Admitamos, contudo, que exista certa lógica (que não seja puramente a do poder) para banir do vasto espaço, que se estende do Alasca à Patagônia, temas fundamentais como a agricultura e o antidumping.
Coerentes com essa lógica, qualquer que seja ela, haveria dois caminhos para buscar um relativo equilíbrio. O primeiro é reduzir o nível de ambição do exercício hemisférico, transferindo igualmente ao âmbito multilateral da OMC outros assuntos que partilham da mesma índole global que o antidumping e a agricultura. Em especial, aqueles em que, quase seguramente, só teremos muito a sacrificar e pouco a ganhar, como é o caso da propriedade intelectual e das compras governamentais. A alternativa, na hipótese de ter de concordar apenas com a exclusão de antidumping e agricultura, é adotar compromisso legal de que todos aceitem o início concomitante na OMC de negociações nessas áreas. Na agricultura, elas já começaram, e, em antidumping, não se deve subordiná-las ao aleatório lançamento de nova rodada, pois nada impede de realizá-las no âmbito de revisão dos acordos da Rodada Uruguai, onde têm sido levantadas as questões mais pertinentes à maneira pela qual americanos e europeus aplicam as regras sobre antidumping ou medidas compensatórias contra subsídios.
A manutenção do cronograma possibilita sincronizar as negociações na Alca e na OMC, a fim de fazer com que concluam na mesma época, fins de 2004. Permite, da mesma forma, sintonizar, no quadro interamericano, os avanços e os recuos em termos de concessões ao ritmo de progresso nos esforços que se desenrolem no tabuleiro multilateral. Ao final dos dois processos, se efetuaria um balanço nos resultados e à luz então de realidades concretas e tangíveis, não meramente de promessas ou expectativas, se decidiria a respeito do nível aceitável de nosso engajamento na Alca.
Não vejo o que se poderia objetar a estratégia sumamente razoável e objetiva como a indicada. Mais do que o caminho atual, com efeito, ela se harmoniza com os princípios predominantes nessa matéria. O primeiro é que o regionalismo só se justifica não como alternativa ou substituto a um sistema comercial mundial aberto e equitativo, mas como “building block”, isto é, tijolo para edificar tal sistema. É a possibilidade de avançar mais rápido num quadro regional, o que inspira, por exemplo, os americanos a buscar na Alca meta mais ambiciosa para a propriedade intelectual do que a lograda na OMC. Com a esperança evidente de que, mais tarde, o precedente regional serviria para ir mais longe no global. Ora, estranhamente, esse raciocínio não parece valer para o antidumping ou a agricultura, em que ele se aplicaria de modo admirável, pois nesses pontos não se vislumbra resistência, mas, ao contrário, encorajamento de parte dos latino-americanos.
O segundo princípio é que, sempre que se verifica progresso maior da OMC, esse progresso deve ao menos ser igualado ou superado pelos acordos regionais. Foi o que ocorreu com solução de disputas e subsídios na Rodada Uruguai, cujos resultados se superpuseram aos do acordo de livre comércio da América do Norte (Nafta). Por que não fazer o mesmo agora com a agricultura e o antidumping, condicionando o nível de compromissos na Alca ao êxito maior ou menor de liberalização a alcançar na OMC? Seria uma maneira de estimular o empenho de todos na busca de um sistema mundial mais acolhedor e, ao mesmo tempo, de equilibrar um pouco o jogo assimétrico que se joga no hemisfério.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 15/04/2001.