Quando Paulo 6º decidiu ser o primeiro papa a falar na Assembléia Geral das Nações Unidas, em meados dos anos 60, ele se apresentou não como representante do Estado do Vaticano, mas simplesmente da Igreja, “especialista em humanidade”.
Segundo Peter Hebblethwaite, o ex-jesuíta inglês que escreveu as biografias dos dois maiores pontífices deste século, João 23 teria sido o primeiro papa “cristão” da história e Paulo 6º, o primeiro papa moderno. A sensibilidade deste último ao mundo moderno iria se revelar um ano antes da explosão de maio de 68, quando publicou sua encíclica social, “Populorum Progressio”.
É nela que se encontra a fórmula lapidar, “o desenvolvimento é o novo nome da paz”. Como antigo discípulo de Jacques Maritain, Paulo 6º entendia o desenvolvimento como “a promoção de todos os homens e do homem todo”.
Isto é, a elevação, o aperfeiçoamento da totalidade dos homens, sem exclusões ou marginalizações, mas também a integridade do ser humano, completo na sua dimensão física e espiritual.
Na segunda-feira passada, tivemos em Genebra uma sessão comemorativa dos 50 anos da Declaração dos Direitos Humanos, com a participação do secretário-geral da ONU, Kofi Anan, da comissária para os direitos humanos, a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson, o presidente Vaclav Havel e Elie Wiesel.
Ao falar nessa ocasião, citei a frase do papa e observei que, nesse sentido amplo, também se poderia dizer que o desenvolvimento é o novo nome dos direitos humanos. Ou, se quiserem, que os direitos humanos pressupõem, como direito-síntese, o direito ao desenvolvimento, à realização integral de cada um e de todos.
É interessante que já na Declaração de Independência, Jefferson havia escrito que o homem tinha direito inalienável à vida, à liberdade e “à busca da felicidade”. Ora, o que é essa misteriosa “busca da felicidade” se não o que hoje chamaríamos de direito ao desenvolvimento?
Essa paixão pelo desenvolvimento integral está justamente na origem da organização para a qual trabalho, a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento, ou Unctad. A “Populorum Progressio” e a Unctad são filhas da mesma época, os anos 60, a era da cultura alternativa, da rebelião da juventude, da revolução do “rock and roll” e do próprio estilo de vida.
Naquela altura, 20 anos depois de a Carta de São Francisco lançar as bases da paz e segurança e a Declaração Universal fazer o mesmo para os direitos humanos, tornava-se evidente que a paz e os direitos humanos não podiam existir no vácuo. Eles necessitavam de fundações materiais sólidas de bem-estar e prosperidade para todos. Lincoln tinha sido profético ao sustentar que uma nação não poderia sobreviver metade livre e metade escrava. Pela mesma razão, a paz e os direitos humanos não poderão sobreviver num mundo um quarto próspero e três quartos miserável.
É curioso como no preciso instante em que se completa a primeira fase de elaboração do conceito de desenvolvimento, com a incorporação da idéia da inclusão horizontal, planetária, de todos os homens e da dimensão vertical do homem inteiro, percebe-se que falta alguma coisa. Estava ausente, em primeiro lugar, a dimensão do tempo. De fato, ainda que sejamos capazes de promover todos os viventes, como podemos garantir que sobrará algo para permitir a realização de nossos netos e bisnetos? Mas além do tempo, faltava igualmente outro aspecto. O homem não se basta a si mesmo, não sobrevive no vazio. Simples elo na cadeia da vida, depende não só das outras espécies vivas, mas da atmosfera, dos oceanos, das águas, do universo material a ser “hominizado” na visionária expressão de Teilhard de Chardim. Em outras palavras, faltava a dimensão ecológica, o conceito de desenvolvimento sustentável.
Isso tudo pode soar abstrato, nebuloso. Tomemos, porém, o caso do Brasil. Como construir um projeto de país sem definir os fins com clareza? Se não soubermos identificar corretamente os fins, é quase certo que nos enganaremos na escolha dos meios. No período autoritário, falava-se em Brasil grande, sinônimo de potência econômica, suporte do poder militar, com seu corolário de programa nuclear, de indústria de armamentos. É isso que queremos, é a exacerbação dos desequilíbrios como consequência do puro jogo espontâneo das forças de mercado ou desejamos algo além do que pode fazer o mecanismo de preços, como, por exemplo, a redução substancial das desigualdades herdadas e agravadas?
Se essa última é a nossa opção, teremos então de escolher políticas de integração e pleno emprego, não de exclusão, medidas de redistribuição da renda, de elevação cultural e combate à passividade diante de um tipo de mercado que faz dos programas de TV de maior degradação e baixeza os preferidos de audiência.
Nesse sentido, nada melhor do que voltar a um livrinho hoje meio esquecido, “Princípios para a Ação”, do dominicano padre Lebret, fundador de Economia e Humanismo. Ele nos convida a meditar de novo o Evangelho do caminho de Jericó e pergunta: o moribundo à beira da estrada? “É o infeliz que encontramos (…), mas é também o proletariado oprimido, os ricos materializados, a burguesia sem grandeza (…). Devemos acolher antes de tudo em nosso coração a miséria do povo (…). Cuidar das necessidades imediatas adianta pouco, enquanto as inteligências não forem alargadas (…), enquanto os humildes não se unirem para a conquista progressiva da própria felicidade (…). Colocar em nosso coração e sobre nossos ombros a miséria do povo (…). Desde que a gente começa a se preocupar seriamente com a miséria, ela chove em volta de nós, ela nos submerge (…). Quem quiser ter muitos amigos, não precisa senão por-se a serviço dos abandonados, dos oprimidos (…). O contrário da miséria: não a abundância, mas o valor. O principal não é produzir riquezas, mas valorizar o homem, a humanidade, o universo”.
Não é preciso ser cristão, nem mesmo religioso para subscrever esses princípios. Vivê-los na prática é outro problema. Mas que projeto maravilhoso para construir o Brasil de nossos sonhos, para justificar ter nascido neste país, neste tempo!
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 21/03/1998.