Não me lembro de ter vivido instante de fervor e deslumbramento intelectual comparável ao que senti ao ouvir Antonio Candido falar sobre “Literatura, Espelho da América?”. Foi em Washington, em 93, durante seminário em homenagem a Richard Morse. Gilda de Mello e Souza fez um paralelo entre Mário de Andrade e Gilberto Freyre e o encantamento foi o mesmo.

A cada um haviam sido dados 20 minutos para a apresentação e ambos, como professores conscienciosos, infelizmente respeitaram o limite. O auditório torcia para que aqueles minutos não acabassem nunca. Como quando a gente lê “David Copperfield” ou “Guerra e Paz”: à medida que se chega ao fim, não sabemos mais se queremos conhecer o desenlace ou prolongar a leitura para sempre.

Ao terminar e ter de suportar banalidades sem interesse, tive a sensação de estar escutando Wladimir Horowitz ou Maria Callas e, de repente, os donos da casa interromperem para nos infligir os talentos da pimpolha de nove anos.

Antonio Candido dizia que, na América Latina, logo após a Independência, a literatura foi atividade devoradora. “Quase tudo devia passar por ela, e por isso ela foi uma espécie de veículo que parecia dar legitimidade ao conhecimento da realidade local.” A construção da literatura e do país, da transposição estética da realidade e da definição da identidade nacional, se confundiam. A fim de ser político, era quase obrigatório ser poeta, romancista, literato, homem de cultura.

Cheguei a Antonio Candido por caminho diverso da maioria de meus contemporâneos. O primeiro livro que li dele não foi “Formação da Literatura Brasileira”, mas sua tese de sociologia, “Os Parceiros do Rio Bonito”, quando de sua publicação em 64.

Quase 35 anos mais tarde, recordo bem a funda impressão que me deixou a revelação dos abismos da miséria rural brasileira. E tudo isso não nos sertões da Paraíba ou do Piauí, mas às portas de São Paulo, perto de Porto Feliz, de onde partiam as monções. O rigor implacável do método da pesquisa, da medição da dieta, por exemplo, de químico que esmiuça e pesa os traços de substâncias até três, quatro casas após a decimal, não deixava espaço à contestação.

Mas o método era banhado de luz, de entendimento e compaixão, de inconformidade diante do desconserto do mundo. Nesse livro inspirou-se o autor de “Marvada Carne”, do filme da obsessão não pela carne figurada da luxúria, mas pela mais prosaica, a propriamente dita, quase sempre ausente do prato do caipira, daquilo que sobrou do bandeirante.

Não tendo estudado ou convivido com Antonio Candido, sou o menos qualificado para falar dele. Quando leio, porém, que ele é o maior crítico do século 20 brasileiro ou o maior professor ou sábio, sei que, embora seja verdade, isso tudo não é ainda o essencial. O que não se diz bastante é que ele encarna a mais alta expressão da consciência moral e intelectual do Brasil. Isto é, a inteligência e a cultura a serviço da justiça e do homem.

Não a utilização desses instrumentos para manipular ou escamotear a verdade, para relativizar o compromisso ético, mas a fim de demonstrar, com o exemplo, que a pureza dos meios, longe de impedir, é condição para realizar o fim justo. Mesmo porque, ao defender com o realismo do poder ou da eficácia os compromissos com os responsáveis pela injustiça, se está impossibilitando, ao mesmo tempo, o fim que deveria em tese justificar o recurso a tais meios. Pois é óbvio que não são os injustos que estabelecerão a justiça nem os amantes da violência e da desordem que hão de implantar na Terra a ordem nascida da equidade.

Nos tempos de fé, o povo exigia e às vezes aclamava santos, homens e mulheres que praticavam a virtude em grau heróico. Mesmo então eram raros os santos da inteligência e da cultura. Parecia suspeitar-se de alguma incompatibilidade irredutível entre a humildade, essência da santidade e o orgulho, a vaidade, a “hubris” dos gregos, pecados dos intelectuais.

Exceções maravilhosas eram casos como os de são Tomás de Aquino, que contou a seu companheiro, frei Reginaldo, haver tido revelação de que não passavam de palha todos os seus escritos sutis de teologia. Pousou a pena e deixou sem terminar sua obra magna.

Em nossa época, que tudo relativiza, não é preciso chegar a extremos tão exaltados. Nem Antonio Candido, com sua aversão a toda palavra enfática, a todo exagero retórico, se reconheceria nesse tipo de sublime exemplo, na hipótese improvável de chegar a seu conhecimento este meu artigo. Melhor mesmo é pedir emprestada sua imagem de espelho e desejar que, ao olhar para ele, o Brasil descubra que tem a cara de Antonio Candido. Pois ele é sem dúvida o melhor, não do que já somos, mas do que aspiramos um dia vir a ser.

Mineiro também, mas de Cordisburgo, do norte, não de Santa Rita de Cássia, Guimarães Rosa foi dos que mais contribuíram, como Antonio Candido, para essa “história dos brasileiros, no seu desejo de ter uma literatura”.

Embora por veredas distintas, ambos trabalharam com o mesmo material pobre. Rosa, com seus óculos grossos de morcego cego, sua cadernetinha em que anotava, em meio a uma reunião diplomática em Manaus, as expressões que ouvia na rua, sua mania de escrever de pé, nas velhas escrivaninhas de contador.

A partir do despojamento material absoluto dos parceiros caipiras do rio Bonito ou dos capiaus que trabalham demais “para poder sair de baixo da pobreza”, que enlouquecem de solidão, de febre, da perda, um a um, dos filhos pequenos, ambos souberam extrair uma riqueza espiritual, um mundo de beleza e emoção que nada tem a invejar ao que Mann, Proust ou Joyce tiraram dos europeus do início do século, intoxicados de luxo, sofisticados ou do tédio de viver.

Não sei, por exemplo, se haverá página mais pungente do que a partida definitiva do Mutúm, “longe, longe daqui”, “distante de qualquer parte”, do menino Miguilim de oito anos, após a morte do irmãozinho Dito, o suicídio de Pai, enforcado com cipó no meio do cerrado.

Quando o doutor José Lourenço, do Curvelo, que “tudo podia”, descobre o que ninguém havia suspeitado, que Miguilim era ceguinho por ter a vista curta, por carecer de óculos. E põe seus óculos no menino e Miguilim olhou. “Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra… As formiguinhas passeando no chão.”

E Mãe, que aceita que ele vá s’embora para a cidade, para comprar óculos, entrar para a escola, aprender ofício, e suspira: “Miguilim, me abraça, meu filhinho, que eu te tenho tanto amor”. Na hora de se despedir de todos, de Mãe, de Tio Terêz, dos vaqueiros, dos enxadeiros, o menino hesita, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade.

Mas o doutor entendeu, tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E ele “olhou para todos com tanta força… Os matos escuros… O gado pastando… O verde dos buritis… O Mutúm era bonito! Olhava mais era para Mãe… Todos choravam… Sempre alegre, Miguilim… Sempre alegre… Nem sabia o que era alegria e tristeza”…

Esquivo a entrevistas, Rosa certa vez deu uma a meninas de colégio. Revelou que, de tudo o que tinha escrito, era a história de Miguilim a que sempre o fazia chorar. “Porque”, confessou, “Miguilim sou eu”…

Com a homenagem a Antonio Candido, nos seus 80 anos, do Miguilim que sobrevive dentro de cada um de nós.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 25/07/1998.