Mais de cem países fora da Europa estão sob a ameaça de ter sido infectados pela doença da vaca louca, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O contágio poderia ter ocorrido por meio da exportação maciça de farinha de carne e ossos de animais, o principal agente transmissor da encefalopatia espongiforme bovina, nome feio que esconde realidade mais tétrica que as palavras.

Origem da enfermidade e país onde se concentra a imensa maioria dos 180 mil casos registrados, o Reino Unido exportou milhares de toneladas de farinha animal entre a primeira descoberta da doença, em meados dos anos 80, e a proibição das exportações, em 1996. Os britânicos suspenderam a alimentação do seu gado com esse tipo de farinha em 1988, mas continuaram a vender o produto a terceiros durante cerca de oito anos ainda. Os outros países da União Européia igualmente afetados só proibiram as exportações em janeiro deste ano!

As vendas se destinaram aos quatro cantos do mundo, com maior concentração em países como Egito, Irã, Iraque, Índia, Indonésia, Tailândia etc. Até mesmo a América do Norte, cujos países endossaram automaticamente a medida canadense contra a carne brasileira, não está isenta de suspeita. Com efeito, os EUA figuram na lista de importadores. É verdade que a quantidade foi pequena, mas, como declarou ao “Financial Times” uma especialista da Organização Mundial de Saúde, “basta material infeccionado do tamanho de um grão de pimenta para contaminar uma vaca”. O mesmo jornal relata que, na primeira semana de fevereiro, o Estado do Texas teve de apartar centenas de cabeças de gado que haviam sido alimentadas acidentalmente com farinha animal.

O porta-voz do Departamento Federal de Agricultura declarou que não se poderia completamente excluir a possibilidade de um problema, mas que essa era eventualidade altamente improvável, dada a existência de controles. Há carradas de equilíbrio e bom senso na declaração, mas será que essas virtudes também inspiraram a medida fulminada contra a carne brasileira? Dentre as perguntas legítimas sobre o sucedido, algumas ficaram até hoje sem resposta.

Por exemplo, será razoável entre países com relações normais adotar medida de tão grave implicações baseada apenas em alegação de falta de resposta à correspondência escrita, sem antes buscar ativamente, por meio de canais diplomáticos ou técnicos, esclarecimentos diretos, pessoais, sobre o assunto? A proibição total, espécie de pena de morte em comércio, seria proporcional e justificável à luz de um único elemento, a falta de informação sobre alguns animais importados não do foco principal da epizootia e na ausência de outros indícios comprobatórios de risco, como uso de farinha animal, casos suspeitos, denúncias etc.? O endosso automático dos outros dois membros do Nafta seria a maneira adequada de criar condições mínimas de mútua confiança para negociar acordo de livre comércio cujos principais parceiros são justamente os países solidários na medida contra o comércio brasileiro de carnes?

Embora pareça pouco provável que essas perguntas encontrem respostas satisfatórias, é útil que cada brasileiro as pondere e compare suas próprias reações com as explicações eventualmente oferecidas pelas autoridades encarregadas de defender o interesse nacional.

Desde já chama a atenção o contraste entre a severidade da palmatória infligida ao Brasil pela suposta negligência em fornecer informações e a relaxada indulgência com que os maiores países desenvolvidos sempre trataram o problema da exportação de produtos proibidos ou perigosos. A partir de 1981, Nigéria, Sri Lanka e algumas nações africanas vêm tentando em vão, primeiro no Gatt, depois na OMC, obter regras para coibir ou limitar o envenenamento de suas populações ou do meio ambiente por mercadorias tóxicas interditadas no ocidente, mas despejadas sem cerimônia nos países pobres, “lata de lixo” do planeta.

Após longo combate desigual, tinha-se a impressão, em 1991, de que se chegaria a um acordo minimalista. Não, como seria lógico, para banir a possibilidade de um país qualquer exportar produto que esse próprio país proíbe internamente. O que se visava era de uma tocante modéstia. Caso um determinado governo decidisse ter razões para justificar exportar a um outro país produto que ele interditara domesticamente, teria apenas que notificar o Gatt e informar a nação importadora de seus motivos. Ora, até isso, considerado inócuo por observadores da época, acabou não saindo porque a delegação americana insistiu em excluir da obrigação de notificar os produtos farmacêuticos, pesticidas, alimentos, tabaco, cosméticos, veículos etc., justamente as categorias em que se concentrava a maior periculosidade. Nada se fez, não existindo até hoje normas que obrigassem os europeus a notificar as exportações de farinha animal, que podem estar na origem de catástrofe de proporções mundiais.

Temos aqui exemplo edificante do que se denomina “a necessidade de regras para aprimorar a governança da globalização”. Os pobres africanos, tão vilipendiados por toda a sorte de corrupção e vício, propunham algo de sensato e comedido, a fim de evitar uma das consequências mais perniciosas da liberalização e globalização do comércio. As regras moderadíssimas que se desejava adotar redundariam em benefício da saúde e do bem-estar de populações de países cuja fragilidade institucional não lhes permita que se protegessem a si próprios. Defendia-se o consumidor, protegia-se o meio ambiente, todas bandeiras enaltecidas em prosa e verso nos países ocidentais.

A causa era perfeita; só que pesaram mais na balança os interesses dos exportadores de morte. Medite-se nisso a próxima vez que se quiser criticar os que, em Porto Alegre ou alhures, buscam alternativa, até mesmo com manifestações violentas, a uma violência calada, insidiosa, que não se vê. A violência do que Emmanuel Mounier chamava de “desordem estabelecida… aquela onde ficam sem trabalho, morrem e se desumanizam, sem barricadas, na mais perfeita ordem, milhões de seres humanos”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 18/02/2001.