É assim que, em “Alice no País das Maravilhas”, Lewis Carroll desconstrói a fórmula tradicional. Em nosso caso, seria mais exato ficar fiel a Guimarães Rosa e dizer “desinfeliz aniversário”. Pois o aniversário de que se trata aqui é o das sucessivas (e aparentemente fracassadas) encarnações do espírito da Revolução. Indo da frente para trás: os 30 anos de Maio de 68, os 150 das Revoluções de 1848 e do “Manifesto Comunista”. Três episódios revolucionários que não deram certo, ao menos no primeiro momento e em relação à meta que pretendiam atingir. E, sem embargo, as comemorações são jubilosas e nostálgicas, próprias de vitórias, não de derrotas.
Encerra-se hoje em Paris a conferência organizada pelos Espaços Marx sob o título “150 anos, um mundo para mudar”, com a participação de centenas de filósofos, historiadores e cientistas sociais de inspiração marxista. Com alguns meses de atraso, eles se reúnem para marcar o aparecimento em Londres, em fevereiro de 1848, de um panfleto de 23 páginas em alemão, o “Manifesto Comunista”. Embora escrito quase todo por Marx em seis semanas, ele leva também a assinatura de Engels, que sugeriu o nome e algumas outras idéias.
O documento tinha sido encomendado por um grupo obscuro, a Liga dos Comunistas, originalmente Liga dos Justos, logo esquecido e que só entrou na história por essa iniciativa. Eram uns poucos revolucionários alemães no exílio, nenhum deles um proletário no sentido rigoroso, isto é, um operário de fábrica. A maioria era composta de alfaiates, segundo o historiador A.J.P. Taylor ocupação que dá ao homem muito tempo para reflexões revolucionárias solitárias e talvez uma antipatia instintiva pelos clientes de alta classe.
É Taylor também que coloca o “Manifesto” ao lado da “Origem das Espécies”, de Darwin, como um dos documentos fundamentais do século 19. Num caso, pode-se dizer, a ênfase é na evolução, na mudança progressiva e lenta; no outro, na revolução, o câmbio súbito e radical.
Formalmente, o texto é enxuto e musculoso, comparável na concisão ao discurso de Gettysburg, de Lincoln. Edmund Wilson o descreveu como “denso com a força comprimida de explosivos de alta potência”. Na época, porém, passou despercebido, da mesma forma que um “trovão inaudível” para os contemporâneos, como disse um escritor francês. Não teve, assim, nenhuma influência sobre as Revoluções de 1848, não foi lido por nenhum dos seus líderes.
Hoje, quase dez anos após a queda do Muro de Berlim e do início do fim do “comunismo real”, é possível uma avaliação mais serena do valor perene do documento e do pensador que plasmaram, mais do que qualquer outra influência, a história deste século que termina. Sua importância não está tanto no acerto ou erro com que orientaram ou inspiraram a ação tática dos partidos comunistas, a ditadura do proletariado, os modelos de sociedade e economia implantados na URSS ou em seus seguidores. Sobre tudo isso, como se sabe, o “Manifesto” e obras posteriores de Marx são parcos e fragmentários.
O que ficou no “Manifesto” e explica a verdadeira redescoberta que está ocorrendo, com artigos recentes na revista “The New Yorker” e em “The New York Times Book Review”, é a sua contribuição perdurável para a formação da sensibilidade moderna, a maneira como nós e nossos contemporâneos percebemos a realidade do mundo criado pela Revolução Industrial. No suplemento do “Times”, por exemplo, o professor Steven Marcus, de Columbia, afirma que o “Manifesto” marca “o momento em que a consciência social e intelectual atinge um novo patamar de abrangência (…) parte integral da sensibilidade moderna (…) alterada pelas condições prevalecentes da vida contemporânea”.
Tanto ele quanto o historiador Eric Hobsbawm sublinham que ninguém soube, como Marx, antecipar o desdobramento lógico e o resultado final inevitável das forças desencadeadas pelo capitalismo industrial. Em outras palavras, ninguém profetizou com tamanha penetração a globalização atual: “A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial (…) deu caráter cosmopolita à produção e consumo em cada país (…) novas necessidades que requerem produtos de terras distantes (…) a interdependência universal das nações”. Marx admirava o poderio esmagador do capitalismo para arrasar barreiras, unificar mercados em escala planetária, realizar maravilhas maiores do que as Pirâmides do Egito, as catedrais góticas,os aquedutos romanos.
Mas, ao lado dessa força criativa, o capitalismo global possui um formidável poder destrutivo até no domínio da família e dos sentimentos, dissolvidos pela sociedade burguesa “nas águas geladas do cálculo egoísta”. Lembra Hobsbawm que esse prognóstico também se confirmou no momento em que, nos países ocidentais, “cerca da metade das crianças nascem de mulheres solteiras ou são educadas apenas pelas mães”.
Onde encontrar melhor descrição da angústia trazida pela globalização do que nesta passagem do “Manifesto”: “A revolução constante da produção, a ininterrupta perturbação de todas as condições sociais, a permanente incerteza e a agitação distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas, congeladas (…) assim como as opiniões, são varridas para longe, todas as recém-formadas se tornam antiquadas antes de poderem se consolidar. Tudo que é sólido derrete no ar, tudo que é sagrado é profanado (…) a burguesia não deixou outro vínculo entre os seres humanos a não ser o egoísmo nu e cru (…) e o homem é finalmente obrigado a confrontar (…) suas reais condições de vida e suas relações com seus semelhantes”?
É devido a palavras como essas que algumas visões do “Manifesto” são, como diz Hobsbawm, mais atuais hoje do que em 1848. É por essa razão que até um adversário convicto como Raymond Aron reconhecia, já em 1952, a capacidade do documento de “atualização permanente”.
Outro aniversário, o dos 50 anos do Gatt, precursor da OMC, reúne nestes mesmos dias, em Genebra, chefes de Estado, inclusive o nosso, protegidos pela polícia contra os milhares de agricultores, desempregados e a legião de marginalizados e excluídos pela globalização anunciada por Marx e cuja melhor encarnação institucional se encontra na OMC.
Diante do simbolismo dessa coincidência, é impossível não lembrar as Revoluções de 1848, a Primavera dos Povos e, antes, a Revolução Francesa, as “guerras dos reis contra os povos”. De um lado, os poderosos da Terra festejando o triunfo do status quo; do outro, os vulneráveis, os ameaçados, os sem-poder, aqueles dos quais o “Manifesto” dizia que nada tinham a perder a não ser suas correntes, embora tivessem um mundo a ganhar.
É essa crença sempre renovada na possibilidade de conquistar o mundo, de mudar a vida, que faz da Revolução uma esperança que não morre e dá a suas celebrações, em contraste com as pompas oficiais mas mortas dos governos, a força e a alegria dos povos.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 16/05/1998.