Pouco antes de morrer quase centenário, o filósofo católico Jean Guitton se perguntava em suas “Cartas abertas”: “Estamos no fim ou no princípio do mundo? (…) Sou o último? Ou sou o primeiro homem? (…) Ouvi Mauriac dizer com sua voz entrecortada: “Afinal de contas, poderemos ser nós os primeiros cristãos”.

Só há um modo de resolver essa questão: indagar se, na mistura de continuidade e mudança que dá conteúdo a todo tempo histórico, o que hoje iniciamos será constituído mais de novo que de velho ou vice-versa.
Há várias dificuldades envolvidas aqui. A primeira é que simplesmente não sabemos, pois não somos os “monitores do desconhecido”, como dizia Claudel.

A incerteza pode, contudo, ser imperfeitamente contornada pela adivinhação na base de assumir que “o que é, será”. A que “coisas” nos referimos, no entanto, quando supomos que as coisas mudarão ou continuarão a ser o que são?
Se é a descobertas científicas ou invenções tecnológicas, não é difícil imaginar que as inovações da engenharia genética e das telecomunicações continuarão a nos maravilhar ou assustar. Algumas delas, sobretudo as relativas à manipulação genética, começam já a balizar o debate filosófico, mas é pouco plausível que este se reduza a questões dessa natureza.

O século foi, porém, dominado não só pela mudança técnica, mas pela luta encarniçada entre formas inconciliáveis de organizar a sociedade. É cedo para dizer se novas ideologias não virão desafiar o domínio da fórmula “democracia-economia de mercado”. Já aprendemos, porém, em Ruanda ou no Kossovo, que não precisamos de ideologias alternativas para continuar a produzir os genocídios e outros horrores que desonraram o século 20.

Se a mudança técnica ou o declínio da ideologia não bastam, portanto, para garantir que o novo século representará uma ruptura em relação ao precedente, teremos de buscar o fator determinante mais fundo, num pequeno livro que o teólogo luterano Paul Tillich publicou há quase há 50 anos, “The courage to be”.

Ele identificava nessa pequena obra-prima três tipos básicos de angústia humana. A primeira era a angústia da morte e do destino, do aniquilamento físico. A segunda é a angústia moral da culpa e condenação, da auto-rejeição por termos escolhido o mal e desperdiçado nossa liberdade. A terceira é a angústia espiritual do vazio e da perda de sentido, da negação do valor do que fazemos e do significado da existência.

Embora todas estejam sempre presentes, cada uma delas tende a predominar no fim de uma era, quando se desintegram as estruturas sociais de participação num sistema de significados, poder, ordem e crenças. Assim, no término do antigo mundo greco-romano, foi a angústia da morte e do destino que prevaleceu, ao passo que na agonia da idade média, a angústia da culpa e da condenação veio a dominar os espíritos.

O nosso seria o tempo da angústia do 3º grau, do desespero de Becket e Kafka diante do vazio, do abismo em que desaparece todo o sentido da vida. O Existencialismo teria sido, por isso, o “horizonte filosófico insuperável” do século 20. Nietzsche foi o seu profeta na vontade quase absurda de se afirmar a si próprio. A frase de Sartre, a “essência do homem é sua existência”, seria como “um relâmpago de luz” a indicar que não existe no homem nenhuma natureza essencial a não ser a circunstância de que ele pode fazer de si o que deseja: o homem cria aquilo que ele é.

Nesse caso, será que a arte contemporânea, o teatro, a filosofia ou a literatura que se fazem hoje anunciam que esteja em vias de ser dobrada em definitivo essa página do desespero? Ou teremos “mais do mesmo”, posto que o velho não acaba de morrer nem o novo de nascer? Seríamos, assim, condenados a repetir com Eliot, “no meu fim está o meu começo, no meu começo está o meu fim”?

Diante disso, de nada servem as invenções técnicas, o fim das ideologias. Pois, como diz também Eliot, “a invenção incessante, a experiência sem fim, // traz o conhecimento do movimento, mas não do que é imóvel; // o conhecimento do discurso, mas não do silêncio; // o conhecimento de palavras, e a ignorância da Palavra. // Todo o nosso conhecimento nos aproxima de nossa ignorância, // e toda a nossa ignorância nos avizinha da morte, // mas a proximidade da morte não nos faz chegar mais perto de Deus”. E indaga: “Onde está a Vida que perdemos em viver? // Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? // Onde está o conhecimento que perdemos na informação?” A conclusão do poeta é sombria: “Os ciclos celestes em vinte séculos // Nos levam para longe de Deus e nos aproximam do Pó”.

Romper com isso tudo, começar de verdade um tempo novo, exige criar sentido, significado, para a economia, a sociedade, a vida. O sentido passa pela justiça e seu fruto, a paz. Requer o esforço de aliviar a dor, de enxugar as lágrimas de todos os olhos. Em país como o nosso, que chega aos 500 anos sob o peso da escravidão e da sua herança, o sentido para justificar a existência humana só pode ser o da luta para resgatar essa dívida. E aqui, assim como em qualquer outra parte, não existe maneira melhor de terminar um milênio e começar outro do que com as palavras que, na Divina Comédia, Ulisses dirige a seus velhos companheiros a fim de dar-lhes a coragem de trilhar o único caminho que vence a angústia:

“Considerate la vostra semenza: // Fatti non foste a viver come bruti // Ma per seguir virtude e conoscenza” (“Considerai a vossa semente: // Feitos não fostes pra viver como brutos // Mas para buscar virtude e conhecimento”).

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 02/01/2000.