Ouvi mais de uma vez de alta personalidade internacional, conhecida pela prudência e pela segurança de julgamento, que os atuais ocupantes da Casa Branca eram ideológicos e vingativos. Receita com esses ingredientes não é de molde a sugerir governo moderado e de luzes após a reeleição.

É verdade que não falta, no extremo oposto, quem ache que a situação vá melhorar. O general Brent Scowcroft, principal assessor de segurança de Bush pai, deu, há pouco, a jornais europeus, entrevista duríssima sobre a política externa americana. Chega quase a ridicularizar o presidente, ao dizer que ele foi de tal modo enfeitiçado por Sharon que o primeiro-ministro israelense o controlaria “apenas com a ponta dos dedos”. Curiosamente, acrescenta ter um palpite de que o segundo mandato não será nem um pouco parecido com o primeiro.

Não sei se o general é dotado de poderes intuitivos fora do comum ou se dispõe de informações de cocheira. Para quem não possui nem uma coisa nem outra, só resta especular sobre as razões objetivas que tornariam possível desempenho menos extremo, se essa é, de fato, a intenção subjetiva dos vitoriosos. A questão de saber se Bush e colaboradores querem efetivamente mudar e no sentido que lhes emprestam, isto é, de maior moderação, é chave, pois a impressão deixada por alguns comentários é que os autores atribuem as próprias aspirações a uma equipe notória por opiniões contrárias.

O argumento clássico em favor do segundo mandato é que, não podendo mais disputar a reeleição, o presidente tem condições de resistir às pressões e de ser ele mesmo, inclusive à custa de alienar apoios políticos. Ora, nada no comportamento de Bush autoriza a concluir que ele tenha sido forçado a agir contra as convicções que arvora. Ao contrário, até no início do primeiro e duvidoso mandato, comportou-se com desenvoltura e extremismo.

Se alguma vez arrostou a impopularidade e foi derrotado, isso ocorreu por tentar levar o país mais para a direita do que as condições permitiam. Foi o caso, por exemplo, do intento frustrado de aprovar perfurações petrolíferas em áreas protegidas do Alasca ou de favorecer os ricos com cortes de impostos ainda maiores dos que o Congresso estava disposto a conceder. De acordo com a lógica do argumento, seria, portanto, de esperar a retomada de algumas dessas propostas com renovado vigor.

Nas posições que lhe deram a vitória-anti-aborto, rejeição de casamento de homossexuais, proibição de pesquisas com embriões, favorecimento da direita religiosa na legislação, o que faz a força da Casa Branca é sua perfeita sintonia com a maioria do Congresso e do país. Ainda que por absurdo se imagine que o Executivo tencionasse mudar de lado, não o conseguiria porque, nesses temas, a maioria parlamentar havia já imposto o endurecimento no governo Clinton.

O mesmo pode ser dito da questão crucial: a segurança contra o terrorismo. É simplesmente inconcebível que esse governo se descaracterize, abandonando a linha dura que lhe possibilitou, após o 11 de Setembro, virar o jogo do poder, até então apertado. Isso não impede flexibilizar a tática, buscando o concurso da ONU e de tantas coalizões quanto possíveis, o que ele sempre fez, aliás, desde que esses elementos ancilares se resignassem a papel subordinado.

Em economia, não há sinais de retificações notáveis de rumo. O próprio presidente vem dizendo que deseja tornar permanentes as reduções de impostos e tenciona cortar o déficit pela metade graças ao crescimento. Em outras palavras, continuar a deixar o déficit rolar por si, conforme faz há quatro anos. Com resultados, diga-se de passagem, que não são de jogar fora pois é o que tem puxado o crescimento, sem que até agora tenha chegado o anunciado apocalipse.

Enquanto o eleitorado seguir acreditando que as coisas estão dando certo no Iraque, no combate ao terrorismo, na economia, não é provável que a administração tome a iniciativa de alterações drásticas para prevenir desastres possíveis. Se esses acontecerem no exterior ou na economia doméstica, as mudanças serão fruto não da escolha mas da tirania dos fatos. Fora disso, pode haver algum ajuste em comércio, onde Washington, caso queira ressuscitar a Alca, poderá oferecer alicientes a latinos relutantes, em detrimento de um ou outro grupo de pressão americano cujo apoio passou a ser dispensável. Não é impossível imaginar, em tal hipótese, que se criem desafios delicados para o Brasil.

Não alcanço enxergar mais do que isso em minha embaçada bola de cristal. Alguns segundos mandatos não foram maus: Roosevelt, Eisenhower, Reagan. Getúlio, porém, suicidou-se, Perón não esteve longe da tragédia, Nixon renunciou, Carlos Andrés Perez, da Venezuela, foi “impeached”, e Clinton teve de passar por julgamento humilhante devido a um deslize sexual. O balanço, convenhamos, não é animador.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/11/2004.