Li em editorial de jornal brasileiro que o secretário do Tesouro dos EUA teria declarado que “há 70 anos os argentinos entram e saem de problemas desse tipo; ninguém os obrigou a ser como são”. Não sei se a atribuição é procedente, mas, seja de quem for, a frase denota atitude que permeia muitos dos comentários publicados: a culpa seria exclusivamente dos argentinos, que se comprazeriam numa espécie de perversidade masoquista de autodestruição.

Boa parte dessas “análises” padece do vício de ver apenas o episódico e o recente, a espuma superficial da hora. Apontam-se às vezes para causas reais, mas imediatas: a inépcia e a corrupção dos governantes, o populismo e o federalismo irresponsáveis. Não se sonda mais fundo, todavia, para ver o que está por baixo da turbulência das águas. Comete-se, assim, o erro censurado por Braudel, que via nos acontecimentos do momento a imagem dos vaga-lumes: brilham, mas não iluminam a estrada.

Outros dão-se ares de sabichões, ressuscitam como novidades esfarrapadas fabricações culturalistas, mal disfarçando a base racista. O mal viria da tara ibérica, possivelmente católica, de não ser capaz nem de copiar as imelhoráveis instituições anglo-saxônicas. Esses lembram o que dizia um polemista dos anos 40 a respeito dos pseudomestres modernos de um saber superficial, tendencioso e pretensioso.

Tome-se, por exemplo, a frase que abre esta coluna. Ela é curiosa porque, sendo feita de duas verdades e uma meia-verdade, a conclusão é, no entanto, completamente falsa. É certo que as complicações começam mais ou menos há 70 anos, mas não deixa de ser sugestivo que não se indague o que aconteceu nessa época. Se a pergunta tivesse sido formulada, a resposta seria que a Inglaterra, inventora da Argentina das “vacas e do trigo”, plenamente integrada na divisão internacional do trabalho vitoriana, muda de rumo e passa, por meio das preferências imperiais, a favorecer seus Dominions, dentre os quais concorrentes dos argentinos como a Austrália e a Nova Zelândia. A crise de 29 fez o resto. Pouco depois, tinha início a desintegração das instituições democráticas argentinas com o golpe de 1930 dos generais Uriburu e Justo contra o presidente Hipólito Irigoyen, líder do radicalismo e símbolo da ascensão social e política da classe média.

É claro que os argentinos não eram obrigados a responder às dificuldades econômicas da maneira como o fizeram. O próprio Brasil seguiu nos anos 30 política bem diferente em relação à dívida externa (a moratória de 37) e saiu da recessão mundial muito antes que os EUA do New Deal, entre outras razões por ter usado o Orçamento para estimular a economia. Não caberia, portanto, absolver os dirigentes do país vizinho por sua parcela de responsabilidade.

O que não é correto é concluir que “ninguém” teve nada a ver com isso, quer dizer, que o contexto econômico externo não criou condições muito mais adversas do que as prevalecentes anteriormente. Superar o protecionismo dos ricos, agrícola e de outra natureza, que persiste mesmo sob a globalização neoliberal, é extremamente difícil, e não só para a Argentina. Com efeito, qual dos 31 outros países do hemisfério Ocidental (não estou contando a própria Argentina, os EUA e o Canadá) conseguiu se integrar ao comércio mundial de modo vitorioso exportando produtos similares aos argentinos ou alterando substancialmente para melhor a composição de sua pauta exportadora? Os dois únicos exemplos de êxito relativo são parciais, recentes e incertos: o Chile porque seu modelo exportador vem perdendo fôlego há anos; o México porque sua inserção na divisão do trabalho promovida pelos EUA no Nafta dificilmente constituirá modelo aplicável a países que não partilham as inimitáveis condições mexicanas.

Dir-se-á que o problema se origina na tara ibero-americana: a corrupção, a incompetência, o populismo, a ojeriza à “disciplina” orçamentária, a falta de boas e sólidas instituições, como as dos que tiveram a ventura de nascer em berço anglo-saxônico. Como explicar, nesse caso, o ocorrido com a Nova Zelândia, o exemplo perfeito de aplicação impecável do receituário neoliberal mais ortodoxo, sem os desvios, imperfeições e corrupções de Menem “et caterva”? Depois disso tudo, aprendemos pela voz de John Kay, colunista do insuspeito “Financial Times”, que a Nova Zelândia é a “Argentina do fim do século 20: um país que começou o século rico e o termina mais pobre”. A explicação do jornal é que não dá para ir muito longe só na base da agricultura.

O que deveria então fazer a Argentina, desistir de sua vantagem comparativa, fundamento da ideologia do livre comércio, e competir com Cingapura na exportação de “chips” e outros produtos eletrônicos aos EUA? Ou tentar construir com o Brasil e os outros parceiros de Mercosul ampliado uma divisão regional do trabalho para valer, capaz de impulsionar a diversificação produtiva e o desenvolvimento de todos os participantes?

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 20/01/2002.