Era essa a expressão que descrevia na Idade Média e até o século 18 o universo dos excluídos e marginalizados: mendigos do Pátio de Milagres, vagabundos, pícaros, prostitutas, monges errantes, desertores. O grande historiador dessa pobreza pré-moderna é o polonês Bronislaw Geremek, conselheiro do Solidariedade e de Lech Walesa. Sua principal obra é um estudo da Europa e os pobres, dos tempos medievais até nossos dias. O título em francês, “La Potence ou la Pitié” (O Pelourinho ou a Piedade”), resume a contradição de compaixão e repulsa despertados pela miséria, a reação das autoridades que oscilavam entre a esmola e a repressão.
Tudo isso e sobretudo a consciência de inutilidade, de imprestabilidade dos excluídos, pareciam ter sido superados para sempre pela Revolução Industrial. O advento de uma “civilização do trabalho” aparentemente continha o potencial de integrar todos os marginalizados por meio do emprego assalariado, contratual. Não que, de início, a rígida arregimentação do trabalho em usina tenha sido percebida como um progresso. Ao contrário, para o mestre-artesão orgulhoso de sua arte e proprietário das ferramentas do ofício, o regime salarial aparecia como a queda na dependência em relação ao patrão, a condenação a viver do “dia-a-dia”. Para os membros das corporações de ofícios, só se tombava no assalariado quando não se era mais ninguém, quando só se dispunha da força dos braços para vender.
Essa atitude sobreviveu muito tempo. É curioso, por exemplo, que o Partido Radical, principal força de governo da burguesíssima 3ª República francesa, ainda propusesse em seu congresso de 1922 “a abolição do assalariado, sobrevivência da escravidão”! À medida, porém, que foram sendo corrigidos, por meio da legislação trabalhista e da proteção social, a pauperização do início da Revolução Industrial, a extrema desigualdade dos contratos, a insegurança empregatícia, o regime do assalariado se consolidou aos poucos como o padrão e paradigma da organização do trabalho.
É nesse preciso momento, como mostra Robert Castel em “As Metamorfoses da Questão Social”, que essas conquistas aparentemente irreversíveis começam a ser destruídas por três tendências principais: 1) uma economia pós-industrial geradora de desemprego estrutural, de massa, atingindo às vezes 20% da força de trabalho mesmo em países de estagnação ou declínio da população; 2) a recente precarização dos empregos restantes, a pretexto de “flexibilização do mercado de trabalho”; 3) a dissolução dos vínculos sociais e a erosão de estruturas comunitárias de proteção como a família, o sindicato, o partido, o Estado.
Mais propriamente do que excluídos, as vítimas desse desabamento são resíduos, sobras, destroços que a enchente carrega. Tornados supérfluos, desnecessários ao processo produtivo, passam a ser os “inúteis para o mundo” do nosso tempo. Sua situação é muito mais dramática do que a dos operários explorados pelo capitalismo clássico e engajados na luta de classe. Esses, mesmo quando trabalhadores não-especializados, eram indispensáveis ao sistema, participantes do jogo de trocas sociais, capazes de terem a situação melhorada pelas políticas reformistas. Já os supranumerários de hoje, os prescindíveis, os que sobram, não são nem mesmo explorados, pois para isso precisariam ter competência de alguma utilidade ou valor. É uma situação nova, uma espécie de inexistência social, embora de tipo diverso, não por falta ou escassez, mas por excesso: não existem justamente porque são excessivos, demasiados, mais do que necessários.
Com efeito, numa sociedade como a nossa, o trabalho não é apenas relação técnica de produção. Ele é também a base privilegiada pela qual o indivíduo se insere, se integra na sociedade, nas redes de sociabilidade e proteção que o cobrem diante das incertezas da existência. É, em outras palavras, o fundamento último da coesão social.
É por isso que devemos nos alarmar e reagir com vigor à explosão do desemprego no Brasil. Esse flagelo do fim do século será muito mais insuportável numa sociedade profundamente desigual como a nossa, que nunca logrou verdadeiramente superar a marginalidade herdada da escravidão, que massacra até hoje seus mendigos e crianças de rua, que desencadeia a brutalidade policial contra os pobres como meio de preservar uma precária coexistência social.
O importante não é discutir se o índice de desemprego aberto é de 7,5% ou de 16%. Esses números são de valor duvidoso num país onde a maioria dos trabalhadores não tem carteira. Deve-se mostrar que provocar conscientemente ou aceitar provocar o desemprego de massa a fim de corrigir ou conter erros de política econômica é moralmente indefensável. Nenhum objetivo macroeconômico justifica ou exige, em hipótese alguma, aumentar o sofrimento dos vulneráveis, ao mesmo tempo que se preservam juros usurários para especuladores de fora ou de dentro. O perigo do desemprego estrutural é que, da mesma forma que a correção monetária, uma vez tolerado, ele cria raízes e inércias difíceis de superar.
Na introdução ao seu livor, Castel indaga: “Se a redefinição da eficácia econômica e da competência social se deve pagar com a expulsão do jogo de 10%, 20%, 30% ou mais da população, pode-se ainda dizer que pertencemos a um mesmo conjunto social?”.
A resposta só pode ser um “não” vigoroso e sem ambiguidade. A não ser que nos resignemos ao fantasma evocado por Hannah Arendt: “O que temos diante de nós é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, privados da única atividade que lhes resta. Não se pode imaginar nada pior”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/03/1998.