Serão um dia saciados todos os que sofrem fome e sede de justiça. A promessa evangélica é certa, mas ela não diz o modo do cumprimento, o dia nem a hora. No cinquentenário da Declaração dos Direitos Humanos, a criação do tribunal criminal internacional e, agora, a decisão sobre a extradição do ex-ditador chileno acendem no coração a tímida esperança de que não hão de ficar para sempre impunes alguns dos mais horrendos crimes deste século.
A solidariedade existe para o bem e para o mal. Como aprendemos na Bósnia e em Ruanda, as atrocidades e injustiças do passado se perpetuam no presente e alimentam a cadeia infernal do ódio e da vingança. A fim de reverter o encadeamento da iniquidade, só há um remédio: a justiça, mesmo imperfeita, não necessariamente para castigar e punir, mas para restabelecer a verdade, devolver aos vivos os seus mortos e reparar o mal, ainda que simbolicamente, mediante a genuína contrição e a possível compensação.
São misteriosos de fato os caminhos da reparação, pelos quais uma época histórica compensa o mal feito pela precedente ou um país tenta curar a ferida que outro rasgou. Há neste caso de extradição uma estranha e sugestiva justiça de que tudo se tenha iniciado pelo ato de um juiz espanhol. Não pelos argumentos falsos dos apologistas do esquecimento. Mas porque, no fundo, o que se fez no Chile, na Argentina e em outros países foi o desdobramento consciente e desejado do que tivera início na Espanha, 40 anos antes, o mesmo monstruoso crime continuado de 212a a outra margem do Atlântico. Pertencem à mesma família da perversidade humana os fascistas e ditatoriais que, em um e outro lado, se entregaram ao sistemático e sanguinário extermínio de todos os “rojos”, os vermelhos de quaisquer matizes, sem muita sutileza em distinguir os inofensivos dos supostos perigosos. Como na resposta que deu o Inquisidor a Simon de Montfort, preocupado, na hora do massacre dos albigenses, em separar os hereges dos fiéis: “Matai-os a todos que Deus há de reconhecer os seus”.
Não é só o parentesco ideológico que liga as duas experiências repressivas. A percepção de que o crime havia sido recompensado na Espanha franquista estimulou explicitamente a repetir o exemplo no sul da América. Se uma sublevação militar fascista conseguira liquidar um governo democrático na Espanha e, após atrocidades inomináveis, a tirania consequente fora absorvida como “êxito” pela comunidade das nações, o que impediria de reproduzir o modelo alhures? Sobretudo se os golpistas e direitistas deste hemisfério tinham sido educados na admiração pela “cruzada” franquista. Em termos históricos, julgar o crime- efeito é igualmente fazer o processo do crime-causa. Ainda que tarde, é preciso começar a julgar em algum momento.
Por que não agora, no ano do centenário de Federico García Lorca, assassinado estupidamente, com 38 anos apenas, em uma madrugada de agosto de 1936, perto de Granada, em Fuente Grande, chamada pelos árabes de Ainadamar ou Fonte das Lágrimas? Ele foi o símbolo mesmo da inocência ferida, da poesia, da inteligência do coração, da alegria, da beleza pura, esmagadas pelo mal tenebroso que iria afogar a Europa e boa parte do mundo. Primícias das dezenas de milhões de mortos inocentes que se seguiriam, como que um dos primeiros a ser colhidos não pela peste irresistível de outrora, mas pelo flagelo evitável do fascismo, parente próximo do direitismo liberticida sul- americano, García Lorca nos interpela em sua morte a não aceitarmos que fiquem sem sepultura e sem justiça os desaparecidos mais anônimos do que ele no Brasil, na Argentina, no Chile, em qualquer parte.
Na sua intuição de poeta, Federico compreendeu como poucos outro fator essencial da desumanização da vida contemporânea: o mecanismo gélido e implacável da cobiça, a irracionalidade da especulação dos mercados. Em meados de dezembro de 1932, na conferência que se converteria no livro “Poeta en Nueva York”, ele assim descrevia sua experiência de bolsista em Columbia, coincidente com o colapso da Bolsa em 1929: “E, sem embargo, o verdadeiramente selvagem e frenético não é o Harlem (…). O impressionante, por frio, por cruel, é Wall Street. Chega o ouro em rios de todas as partes da terra e a morte chega com ele. Em nenhum lugar se sente como ali a ausência do espírito; manadas de homens (…). E o terrível é que toda (essa) multidão (…) crê que o mundo será sempre igual e que seu dever consiste em mover aquela grande máquina noite e dia e sempre. Tive a sorte de ver por meus olhos o último crack, em que se perderam vários bilhões de dólares, um verdadeiro tumulto de dinheiro morto que se precipitava no mar, e, entre vários suicidas, (…) jamais senti a impressão da morte real, a morte sem esperança, a morte que é podridão e nada mais, como naquele instante, porque era um espetáculo terrível, mas sem grandeza”.
Não foi só o fascismo que se dedicou a assassinar os poetas e, sobretudo com Auschwitz, tentar criar um universo no qual a poesia fosse uma impossibilidade. O totalitarismo stalinista não ficou atrás da sanha de levar ao desespero e à destruição poetas como Maiakóvski e Ossip Mandelstam. Mas a última palavra será sempre dos poetas, de García Lorca, que evocamos aqui, ou da grande lírica russa Ana Akhmátova, amiga de Pasternak e de Isaiah Berlin. Seu marido e seu filho foram vítimas de Stálin, e ela mesmo só sobreviveu por milagre, humilhada e sob constante perigo. Os versos que ela dirigiu ao seu verdugo constituem o mais terrível vaticínio do destino final de todos os tiranos, condenados, cedo ou tarde, à rejeição pelo próprio povo:
“Durma bem.
Não venho importunar-te com a cobrança.
A força é tua lei, teu meio e teu fim.
Virá, porém, o tempo da vingança.
Teus filhos te amaldiçoarão por mim.”
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/12/1998.