Foi na Argentina que comecei a entender a irremediável futilidade de querer adivinhar o futuro político dos povos. Ali trabalhei por três anos na embaixada a partir de 1966 e frequentava os melhores analistas locais. Ao sair de Buenos Aires, em maio de 1969, estava assim convencido do que todos eles me repetiam: que a ditadura de Ongania tinha sido “legitimada” pelos resultados econômicos (conforme se afirmava do Brasil, na mesma época). Até o peronismo e os sindicatos supostamente participariam do “consenso tácito” em torno de regime que se vangloriava de não se deixar limitar por prazos, apenas por objetivos a atingir no tempo que custasse. Quinze dias após minha partida, um motim espontâneo como o atual, o “cordobazo”, tornava inevitável o que parecia até então impensável: o apocalíptico banho de sangue do retorno de Perón e seu lastimável segundo governo. O pior haveria de vir em seguida com Isabelita, o bruxo López Rega cozinhando o veneno de onde sairia a mais atroz das tiranias militares que enegreceram os anais latino-americanos, inovando em crueldade até em relação à hediondez do nazismo, ao inaugurar a prática monstruosa de sequestrar bebês após assassinar as pobres moças que os haviam trazido à luz.

Todas essas lembranças me voltaram ao contemplar como, no fugaz intervalo de duas semanas, o panorama argentino mudou várias vezes de presidente e de figura, ora animando os que acreditavam detectar indícios encorajadores de flexibilidade inteligente nos anúncios de política econômica, ora desesperando os que concentravam a mirada na assustadora combinação da anárquica espontaneidade das massas com a cupidez e a cegueira de políticos incuravelmente irresponsáveis. Como acabará tudo isso? É possível que um governo de união e um presidente menos provinciano consigam pouco a pouco voltar à normalidade. Façamos votos de que acabe tudo bem. Convém lembrar, no entanto, que esse tipo de situação é frequentemente a expressão de profunda e duradoura desagregação. Faz uma década que a Venezuela viveu episódio similar. Lá também um presidente populista como Menem converteu-se, ao voltar ao poder, à ortodoxia monetária. O programa do FMI provocou igual levante popular, com dezenas de mortos. Após a gorada intentona dos pára-quedistas, Carlos Andrés Pérez foi, como Collor, vítima do impeachment. Há dez anos o país se debate em convulsões.

Há entre as duas situações semelhanças perturbadoras. É total em ambas o repúdio à corrupção dos políticos e o desapreço pelas instituições que encarnam: Congresso, Judiciário, partidos. A tradição de sistema partidário de solidez relativa (ao menos superior à nossa) esboroou-se de um dia ao outro, pouco restando da Ação Democrática e do Copei na Venezuela e da União Radical e do peronismo esfacelado em dezenas de tendências na Argentina. Em um e outro caso, ajustes recessivos empobreceram, desempregaram e finalmente levaram ao desespero e à revolta populações que já se encontravam antes à beira da explosão.

Acaso essa desintegração fatal do sistema político é apenas peculiar ao país mais ao norte e ao mais ao sul do continente? Nesse caso, o que pensar do ocorrido no Equador e no Peru, para não falar da Colômbia, onde o processo de auto-aniquilamento é de particular virulência? Não haveria algum elo, um ar qualquer de família entre essas manifestações patológicas de dissolução social e política, da qual a rigor somente o Chile escapa?

E o Brasil, dirão leitores impressionados com a avalancha de comentários congratulatórios acentuando nosso êxito em “descolar” da Argentina? Efetivamente, acho prematuras e até perigosamente autocomplacentes essas expressões de regozijo em nosso caso. É certo que existem diferenças objetivas que nos favorecem. Será, contudo, que não sofremos de similar dependência para rolar dívida que cresce implacavelmente? Será que não sacrificamos aos juros o crescimento, a prioridade social, a melhoria da infra-estrutura? Não sofremos igualmente de desumanas taxas de desemprego, não toleramos 50 milhões de brasileiros em lastimosa miséria? Os partidos, o Judiciário, o Congresso, serão mais eficientes que seus congêneres, desfrutarão entre nós de aprovação e confiança sensivelmente melhores do que em nossos vizinhos? Quem se atreve a dar resposta tranquilizadora a essas perguntas?

Os que tiveram a experiência do governo sabem como é tênue, precária, quase imperceptível a linha que separa no Brasil um mínimo de estabilidade e controle do risco de novamente resvalar na angústia. Basta uma escorregadela nas eleições e poderemos, em poucos meses, passar a viver situação análoga à que conduziu à ruína de De la Rúa: a contradição entre vagas promessas de mudanças e a impotência, a inépcia em traduzir essas indefinidas aspirações em políticas realistas e efetivas. Se é verdade que a diferença entre sucesso e fracasso reside, em última análise, na capacidade de formular e executar políticas de qualidade, na “political craftmanship”, isto é, na competência política, será que, ao dar balanço nos últimos 20 anos, teremos a coragem de dizer que essa virtude tem sido aqui mais regra do que rara exceção?

Por todas essas razões, não nos faria mal um pouco de sobriedade e modéstia, com pitadas de realismo para reconhecer nossas fragilidades passadas e presentes. Tampouco nos prejudicaria se, em vez de julgar e condenar os argentinos, fizéssemos um esforço para compreender como e por que chegaram eles a tais extremidades. O que se deve nisso a causas comuns como a má qualidade da inserção econômica no mundo, a discriminação protecionista de que somos todos vítimas, o modelo perverso que adotamos. Aquilo que, em câmbio, provém de nós mesmos, da compartilhada condição latino-americana de países que jamais souberam integrar seus milhões de humilhados e ofendidos a instituições que lhes garantissem um mínimo de bem-estar, justiça e participação. Em suma, a hora não é de celebrações, mas de humildade, de admitir, como dizia Chesterton do pecado original, que “estamos todos no mesmo barco e todos com enjôo”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 06/01/2002.