De todos os paradoxos de Chesterton, meu favorito é: “A história nos ensina que a história não nos ensina nada”. Mas será mesmo que o homem só é capaz de aprender com os erros, a título individual? Será que, ao passar à dimensão coletiva da sociedade, se perde misteriosamente essa capacidade?

Se assim fosse, seria difícil explicar como os alemães adquiriram sagrado horror antiinflacionário depois dos horrores da hiperinflação de 23, os espanhóis preferiram o compromisso de Moncloa a repetir a carnificina da Guerra Civil de 36 a 39 ou os vencedores da Segunda Guerra Mundial ofereceram aos vencidos o Plano Marshall, em lugar do castigo das reparações e humilhações do Tratado de Versalhes.

Esses exemplos nos dão esperança de que afinal talvez não seja impossível evitar que se repita depressão global parecida à dos anos 30. Há dois meses, ainda havia dúvida se a crise chegara ao ponto ótimo de obrigar os grandes a se mexer, pois as economias dos EUA e da Europa praticamente não tinham sido afetadas.

Desde então, dois acontecimentos interligados nos fizeram “mudar de mundo”: o colapso da Rússia e o estouro do Long- Term Capital Management (LTCM), provocando a fobia do risco, a contração da liquidez e a ameaça de recessão nos EUA. No futuro, ao se escrever a história da presente crise, se dirá que um dos seus “turning points” foi quando o Fed reduziu os juros, pela segunda vez em menos de três semanas, mesmo sem reunião prévia do seu Conselho Diretor, correndo assim o risco de desencadear pânico.

Ainda assim, os europeus continuavam embalados pela ilusão de sua suposta imunidade à crise. Nos últimos dias, contudo, houve duas mudanças importantes.

No plano político, completou- se a guinada à esquerda da Europa, onde hoje 11 países são governados por socialistas, com a formação na Alemanha de coalizão socialistas-verdes, mais à esquerda do previsto, e pela constituição na Itália do primeiro governo liderado pelo ex- partido comunista.

No domínio econômico, a Comissão Européia anunciou que a previsão de crescimento para o ano próximo tinha de ser reduzida de 3,2% para 2,6% e talvez ainda menos.

A reação foi rápida:

1) Lionel Jospin propôs reduzir os juros (já de apenas 3,3% na França e Alemanha), a fim de estimular o crescimento;
2) O novo ministro alemão da Economia, Lafontaine, não só o apoiou, mas foi além, defendendo a fixação de bandas com parâmetros para a variação do euro, do dólar e do iene;
3) Ainda mais significativo, o respeitado comissário europeu Mário Monti sugeriu que se flexibilizasse a aplicação da meta de déficit orçamentário de 3% não computando os investimentos como despesas.
O que existe de comum em todas essas propostas? Elas partem claramente da convicção de que:
a) A deflação, não a inflação, é a grande ameaça atual;
b) O crescimento é a prioridade central, caso se queira diminuir o desemprego em torno do altíssimo índice de 12%;
c) A inspiração da política macroeconômica não provém mais dos monetaristas ortodoxos ou neoliberais, mas da ênfase keynesiana na necessidade de manejo da demanda global.

Assiste-se na Europa e em todo o mundo a um retorno a Keynes. O mais próximo e poderoso conselheiro de Lafontaine, por exemplo, é Heiner Flassbeck, o mais célebre dos economistas keynesianos alemães. Aliás, esse retorno não deveria surpreender, pois Keynes só teve êxito nos anos 30 porque os ortodoxos ficaram paralisados pelo colapso do mercado em 29 e não foram capazes de propor alternativas. O mesmo cenário se repete agora. Diante da ameaça do alastramento da crise, o Banco Central Europeu e os economistas convencionais se comportam como o imperador Francisco José na antevéspera da dissolução do império austríaco: preferem a estagnação e a inércia à ação, inseparável do risco.

Pela primeira vez desde o início da crise, as três maiores economias do mundo passaram à ação. No Japão, aprovou-se e começou-se a implementar o programa de saneamento bancário e lançou-se o Plano Miyazawa, que, segundo a Unctad, poderá representar, em três anos, estímulo de mais de US$ 300 bilhões para a Ásia.

Nos EUA, o ativismo do Fed em matéria de juros e de resgate do fundo LTCM foi reforçado pela aprovação dos recursos para o FMI e, sobretudo, pela política de desvalorização do dólar. É indício de que os americanos se preparam para exportar suas dificuldades para japoneses e europeus, detentores de polpudos saldos comerciais, beneficiando por tabela moedas como a brasileira e as asiáticas, vinculadas ao dólar.

A Europa sai finalmente do esplêndido isolamento e seus líderes socialistas começam a enfrentar a obtusa teimosia dos banqueiros centrais, não só para escapar à estagnação, mas a fim de contrabalançar o perigo de excessiva valorização do euro diante do dólar enfraquecido.

O fator decisivo aqui foi obviamente a derrota na Alemanha dos conservadores, responsáveis pela rigidez do pacto de estabilização que engessa a economia européia e a condena à passividade diante do desemprego. Em face de uma direita dogmática, sem imaginação e sem esperança, os socialistas fazem figura de gente pragmática, interessada mais em resolver problemas do que em se aferrar a ideologias. O sucesso de Jospin, por exemplo, é tal que, há pouco, o conservador “Le Figaro” publicou artigo de página inteira do não menos conservador Jean d’Ormesson, no qual ele se pergunta: “Será que deveremos todos virar socialistas?”.

Enfim, as coisas começam a se mover, embora seja difícil dizer se não será tarde demais, pois persistem as áreas de sombra: recessão japonesa, lentidão da recuperação asiática, nervosismo da Bolsa em Wall Street e na Europa, encolhimento da liquidez, queda brutal da poupança americana.

De qualquer forma, o passo inicial para enfrentar os problemas é falar deles. Quem se interessa por exorcismo sabe que os demônios se expulsam não só com água benta e orações, mas arengando-os, admoestando-os, chamando-os pelo nome. Como naquele misterioso episódio do Evangelho em que, interrogado por Jesus sobre seu nome, um demônio particularmente assustador responde: “Meu nome é Legião porque sou muitos”.

São numerosos efetivamente os demônios que nos afligem. Um dos piores é o desemprego, que, sabem os socialistas, ou é exorcizado ou os destruirá. Como muitos dos demônios da economia são psicológicos, é preciso tratá-los, como manda a psicoterapia, com palavras, sim, para reconhecer sua natureza, mas também com muita fé e ação decisiva, pronta e forte.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 31/10/1998.