Insisto no título, não só por que o tema continua o do sábado passado. É que devo uma reparação ao hoje provavelmente esquecido Gustavo Corção. A fim de chamar a atenção para um romance seu que merece leitura, emprestei-lhe o título, que data de 1951, para meu artigo sobre a crise de governo na Itália. Não sei se o fax de Genebra chegou empastelado ou se a pessoa encarregada de copiá-lo cometeu um lapso mental devido à discussão sobre a corrupção, que, como sabemos não é endêmica entre nós. O fato é que o artigo acabou publicado como ”Ladrões” e não ”Lições do abismo”. Embora um tanto enigmático, o título não deve ter perturbado os leitores brasileiros, que não se espantam facilmente com a capacidade de nossos ladrões de roubarem objetos de todo gênero, das urnas marajoaras até as verbas do orçamento e o leite das crianças.
Descrita pela sua principal vítima como ”a mais maluca das crises”, esta última terminou como tinha começado: de forma inesperada e gratuita. Desarvorado pelas mensagens de protesto que inundaram a sede de Rifondazione Comunista, seu líder, Fausto Bertinotti, teve de bater em retirada. Em troca de concessões para salvar-lhes a face _atenuação da reforma das aposentadorias, promessa de introdução qualificada da semana de 35 horas_ os comunistas ”duros e puros” voltaram atrás em questão de dias e reconduziram ao poder um Romano Prodi engrandecido e consagrado como estadista.
Enquanto durou a crise, o debate público demonstrou não ser por acaso que a Itália é a pátria de Maquiavel, Mazzini e Garibaldi, da democracia-cristã e dom Luigi Sturzo e do comunismo de Togliatti, do europeismo de De Gasperi e do eurocomunismo de Berlinguer, pioneira do fascismo na Europa e no mundo com Benito Mussolini e criadora do marxismo mais original do Ocidente com Antonio Gramsci.
Desta vez a bossa política dos italianos se manifestou sobretudo na riqueza de epítetos e anátemas descarregados sobre Rifondazione. A acusação mais frequente é de que os comunistas irreformados preferem a ética das convicções abstratas à moral realista da responsabilidade, que se rende à tirania dos números e dos fatos. Bertinotti chegou a ser comparado com as ”belas almas” e as ”consciências infelizes”, assim descritas por Hegel na Fenomenologia do Espírito: ”A consciência (infeliz) vive na angústia de macular a glória do seu íntimo com a ação e o ser; e, para conservar a pureza do coração, foge ao contacto da realidade (…). Nessa transparente pureza (…) arde consumindo-se em si própria e desaparece qual leve nevoeiro que se dissolve no ar”.
Não é de estranhar que, perdidos em tão abstrusos devaneios, os analistas tenham descartado sem cerimônia a explicação dada pelo líder de Rifondazione: ”Existem duas esquerdas porque existem duas abordagens, duas alternativas distintas ao processo de globalização capitalista. A primeira quer administrar o seu desenvolvimento. A segunda lhe é antagônica, de resistência e aspira a um novo modelo social”.
Há talvez nessas palavras algum eco longínquo da acusação estalinista segundo a qual os social-democratas ou social-traidores, conforme se dizia na linguagem truculenta de então, se prestavam no fundo ao triste papel de administrarem, como testas-de-ferro, a crise do capitalismo. Ora, na Itália e na Europa em geral, essa crise se manifesta de forma particular na falência do sistema de aposentadorias. E este só pode ser reformado com a ajuda dos sindicatos e partidos de esquerda.
Bobbio julga Rifondazione com excessiva severidade talvez. Diz ele não ser exato que haja duas esquerdas. Na verdade, para Bertinotti o que existiriam seriam duas direitas, pois os durões considerariam Blair de direita e Jospin idem.
Os moderados como Bobbio, os socialismos reformistas na Itália, como na França e outros países europeus, abandonaram a velha dicotomia esquerda-direita, socialismo-capitalismo. Um de seus arautos, citado em meu artigo anterior, afirma com franqueza brutal: ”No Ocidente no qual vivemos, o reformismo é o único horizonte possível para a esquerda do fim-do-século”. E a construção da nova Europa seria, para essa esquerda moderna, o único ”horizonte não só geográfico, mas igualmente ideológico e cultural”.
Diante desse imperativo categórico, a pergunta que a gente se faz é: de que Europa se trata? Pois, da mesma forma que há diversas modalidades de globalização, existem várias Europas possíveis. Durante a Revolução Francesa e nas jornadas de 1848 costumava-se opor a ”Europa dos povos” à ”Europa dos reis”. Hoje alguns opõem a mesma Europa dos povos à Europa dos bancos centrais e dos mercados financeiros.
Dir-se-á que esta última é a única realisticamente possível, já que é a condição imposta pelos alemães para deixarem o marco e passarem ao euro. Acontece que quando os critérios de redução do déficit, da inflação e do endividamento foram fixados em Maastricht, não se imaginava que sua implementação ocorreria numa conjuntura européia de desemprego alarmante, demanda frouxa e crescimento nulo ou anêmico. Em tal conjuntura, a adoção coordenada de políticas contracionistas por todas as grandes economias ao mesmo tempo torna apenas inevitável que a passagem à moeda única agrave as dificuldades existentes e provoque crescente oposição popular.
Alguns dos maiores economistas europeus como os do núcleo de Cambridge pensam, com efeito, que a causa principal do alto desemprego europeu está nos erros de política macroeconômica a partir do início dos 80. Como o Estado-Maior francês de outrora, os bancos centrais continuariam a combater a guerra errada, dando ênfase excessiva, quase obsessiva, a uma inflação que há muito tempo deixou de ser ameaça. É por isso que a demanda não cresce e com ela permanecem estagnados os investimentos e o nível de emprego. Ao contrário da Alemanha e França, por exemplo, a Inglaterra conseguiu expandir o emprego através de uma política mais flexível que o país não quer abandonar em nome do euro. O mesmo ocorre nos EUA, onde o FED concilia três objetivos: combater a inflação, estimular o crescimento e fomentar o emprego.
Em contraste, o banco central alemão não hesitou, dias atrás, em aumentar a taxa de juros, apesar de que isso não facilitará a tarefa do governo de reduzir um desemprego que, no mês passado, saltou na Alemanha Oriental de 17% a 19%! Numa Europa que se aferra a esse dogma, não se vislumbra bem como se poderá eliminar um desemprego que cresce mês após mês. Os comunistas são com razão condenados por terem sacrificado gerações presentes a uma utopia futura. Não haverá agora risco de que os socialistas reformistas estejam sacrificando os desempregados, sobretudo os jovens, a uma nova utopia chamada Europa?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 18/10/1997.