Como o personagem de Kafka que acorda transformado em um inseto, o Mercosul virou um bicho estranho: cada vez parece menos uma união aduaneira e mais uma filial da Associação Bolivariana de Nações.

A união aduaneira é a mais ambiciosa modalidade de acordo comercial. Vai muito além dos acordos de livre comércio como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e o Nafta [Acordo de Livre Comércio da América do Norte]. Exige de seus membros não só o compromisso de abolir todas as barreiras internas ao comércio entre eles mas a de adotar uma barreira externa comum em relação a terceiros. Passo que freqüentemente precede a união política como a “Zollverein” da Alemanha do século 19, é etapa à qual só se chega após decênios de árduos esforços. Vide o exemplo do Mercado Comum Europeu.

Foi por isso que se estranhou que, num piscar de olhos, a Venezuela entrasse para o Mercosul como membro pleno, antes de completar e, ao que me consta, de iniciar mesmo a negociação para valer. Pode ser que interesse ao Brasil e ao Mercosul a ampliação de mercado decorrente da entrada da Venezuela, mas será que foram examinadas todas as implicações de tal adesão? Onde estão as informações sobre as razões estritamente comerciais do ingresso relâmpago?

O que dá seriedade à OMC (Organização Mundial do Comércio) é que leva anos conseguir abrir as portas do clube. No caso da China, foram mais de 11. Coube a mim, como presidente do Conselho do Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), antecessor da OMC, saudar o primeiro observador da URSS. Foi há 16 anos, e a Rússia ainda não logrou entrar, apesar do interesse politico da recente reunião do G8. Embora exija infinitamente menos que uma união aduaneira, é preciso que os candidatos à OMC passem por exame completo de toda sua legislação e prática comerciais. Devem, ademais, concluir negociações bilaterais com cada um dos membros.

A OMC não abre mão do rigor dessas condições porque sabe que se desmoralizaria se facilitasse a entrada de quem não dá garantia de que pode cumprir as obrigações. Viraria a casa da mãe Joana, como a entidade da qual dizia Groucho Marx que jamais entraria para um clube que o aceitasse como sócio.

O nosso clube do Sul está dando a impressão dos grandes times de São Paulo e do Rio de Janeiro hoje na zona de rebaixamento. A Argentina e o Uruguai brigam nos tribunais por causa de fábricas de papel, o Brasil autolimita as vendas ao mercado argentino apenas para ver seu lugar ocupado por chineses, o Paraguai e o Uruguai ameaçam aderir à Alca, o Uruguai assina acordo de investimento pelo qual concede aos EUA tratamento que os sócios ainda não possuem, o presidente Tabaré Vásquez, declara que, mais do que a solução, o Mercosul é que é o problema.

Diante desses sinais alarmantes, o sensato seria o Mercosul fazer autocrítica, empreender esforço objetivo para tentar satisfazer aos menores, aperfeiçoar e aprofundar suas instituições de solução de litígios, melhorar e fortalecer o secretariado e sua incipiente institucionalização, completar a integração nas áreas de serviços e investimentos.

Exigiria imaginação criadora e paciência, daria trabalho, mas seria o caminho da competência e do profissionalismo. Em vez disso, prefere-se a fuga para a frente, ampliar na superfície em lugar de adensar em profundidade, diluir e dissolver em retórica em vez de consolidar de modo efetivo e operacional.

Critérios político-ideológicos não têm lugar num acordo comercial e o convertem em mais um fórum declaratório anódino, como o Clube do Rio ou a Cimeira Ibero-Americana. Foi o que se viu na reunião de Córdoba, cuja espetaculosidade teve pouco a ver com um fórum capaz de encaminhar solução para os graves problemas comerciais do bloco.

O pior é a sensação de que o Brasil está a reboque de outros. Tem-se a impressão de que houve uma divisão de esferas de influência. Para a OMC, reservam-se as iniciativas da capacidade brasileira de formulação e liderança no G20 ou a título individual. Já na América do Sul, deixa-se o campo livre a uma liderança que lembra a política estudantil. Desse jeito, corremos o risco de acabar minoritários em nossa própria casa e de acordar com um Mercosul que terá cada vez menos a cara do Brasil.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/07/2006.