Bastou pouco mais de um mês para promover realinhamentos inesperados no cenário mundial. Dois deles são suficientes para mostrar que o alcance e o significado dessa dança de posições podem ser profundos e duradouros. Um é a decisão russa de rever sua oposição a aspectos fundamentais da estratégia americana, tanto em relação à defesa antibalística como à expansão da Otan. O outro é o esboço de uma rearrumação das peças do quebra-cabeças do Oriente Médio, cujo encaminhamento pacífico ganhou urgência nova. Fatos impensáveis semanas atrás sucedem-se com tal rapidez que nem ocupam muito espaço no noticiário: o presidente Bush anuncia ser favorável a um Estado palestino, Sharon evoca o espectro de Munique e do abandono dos tchecos pelos ocidentais, Arafat evita o erro da Guerra do Golfo, adere à coalizão, reprime manifestantes e prende fundamentalistas.
Os dez anos decorridos desde a queda do muro de Berlim foram uma era de degelo na qual, um após outro, desfizeram-se os nós de quase todas as questões aparentemente insolúveis no clima paralisante da Guerra Fria: o confronto ideológico, o equilíbrio do terror, a divisão de Berlim e da Alemanha, sua reunificação e integração ao espaço europeu e atlântico, os regimes comunistas da Europa do leste, o apartheid da África do Sul, a guerrilha da América Central, o conflito no Camboja. Nesse quadro, a latente animosidade entre a Otan e a Rússia não era apenas anacronismo herdado da Guerra Fria. Ameaçava converter-se em profecia auto-realizável ao dar razões concretas ao temor russo de um cerco hostil e impedia a conclusão lógica do desmantelamento do arsenal nuclear redundante e sempre ameaçador.
Por outro lado, o Oriente Médio é o único problema de 50 anos, oriundo da fase imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra, com potencial complicador de provocar imensurável estrago estratégico (os outros, Taiwan, Caxemira etc. são mais limitados). É também o desafio que tem patenteado de modo mais persistente a patética incapacidade de todos os componentes do sistema internacional, inclusive do seu mais poderoso membro, de encaminhar soluções institucionais e pacíficas aos conflitos.
É possível, embora não seja de forma nenhuma inevitável, que o terremoto do 11 de setembro rearrume as camadas estratificadas da geologia internacional. Como esses violentos cataclismas que fazem aparecer à vista os mamutes fossilizados na Sibéria, pode ser que no novo clima torne-se viável o acordo quase concluído em Camp David entre Barak e Arafat ou a definitiva aproximação entre a Otan e a Rússia.
Outros rearranjos são dignos de nota. As Nações Unidas, às quais Washington acaba de pagar sua cotização, readquirem prestígio como única instância que pode imprimir legitimidade à luta contra o terrorismo. A China colabora com a campanha em curso, apesar de preservar atitude mais contida e discreta que a russa. Não se opõe, contudo, ao rearmamento crescente mas circunspecto do Japão. O ativismo inglês relega a uma sombra modesta os gestos dos demais europeus para fazer valer seus préstimos. Mais que a retórica sobre a unidade européia, acerca da comum política externa e de defesa da Europa, fala a contundência dos fatos: as operações de bombardeio contra o Afeganistão, as visitas diplomáticas à região são firmemente controladas pelo eixo angloamericano, a velha e a nova potência predominantes, Churchill-Roosevelt, os mesmos a manter, ao longo da década, inalterável linha de conduta diante do Iraque.
É o que trai os limites da atual coalizão. Deseja-se que ela seja a mais ampla possível, já que não se deve menosprezar nenhum aporte, por mais limitado que seja: autorização de sobrevôo, de uso de aeroportos ou de trânsito pelo território, colaboração em matéria de inteligência ou de estrangulamento financeiro do terrorismo. Aprendeu-se, no entanto, a lição das campanhas na Somália e nos Bálcãs e das dificuldades de coordenar no terreno esquemas de múltipla participação como os da ONU e da Otan. Desta vez, a estrutura de comando será unificada na base do velho princípio da sabedoria patriarcal luso-brasileira: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
É forçoso reconhecer que, na cuidadosa montagem da coalizão e na preparação das operações, os americanos têm revelado mão de mestre. Sobressai nitidamente a figura de estadista do secretário de Estado, Colin Powell. Conheci-o em Washington quando ali estive como embaixador e fiz-lhe entrega de condecoração militar brasileira. O contato foi breve, mas deixou-me uma das impressões mais marcantes de maturidade e equilíbrio que recebi de qualquer homem público, a lembrança daquela qualidade difícil de definir que os romanos chamavam de “gravitas”.
Esse começo não quer dizer que a estratégia não possa ir à deriva, perigo ainda maior em campanha que se anuncia demorada e com inúmeros participantes. Vejo três riscos acima de tudo. O primeiro é o de “over-extension”, de ambição desmesurada e excessiva em propor-se objetivos inatingíveis. Como fez o presidente Kennedy no discurso de posse, ao inaugurar atitude que acabou por levar ao atoladeiro do Vietnã. É legítimo que os Estados Unidos queiram proteger-se preventivamente das organizações terroristas de alcance global dispostas a atacá-los e dos países que as protegem. Mas exatamente quais são elas e que países as manipulam? Da resposta a essa pergunta dependerá a contenção da campanha dentro de limites realistas e razoáveis. O segundo risco é o de que o terrorismo venha a substituir a subversão comunista como o prisma capaz de distorcer todo problema internacional, impedindo de perceber suas causas próprias, políticas ou econômico-sociais. Tal qual aconteceu com os movimentos anticolonialistas de independência. Já há quem reclame a necessidade de um novo imperialismo para disciplinar os países incapazes de se governar a si mesmos. Ou quem deseja assimilar os membros do movimento de protesto contra a globalização aos “inocentes úteis”, companheiros de rota do terrorismo. Diante da ameaça real do terrorismo, a última coisa de que precisamos é reinventar o macartismo, de relançar a caça a supostas bruxas. O terceiro risco é o de achar que a diferença entre as culturas inelutavelmente as condena ao enfrentamento. Isso só sucederá se não soubermos isolar os extremistas em cada cultura e se nos mostrarmos insensíveis aos genuínos valores humanos que todas e cada uma nos oferecem.
É cedo para dizer se os realinhamentos atuais hão de revelar-se mais constantes que os da Guerra do Golfo. Naquela época, falou-se muito em “nova ordem internacional” e deu no que deu. O Brasil terá, porém, de ser perceptivo aos sinais dos tempos, a fim de defender seus legítimos interesses nesse panorama em rápida mudança.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/10/2001.