“Uma a uma, começam a apagar-se as luzes em toda a Europa; não as voltaremos a ver acesas no tempo que nos resta de vida.” Edward Grey, o ministro do Exterior de maior permanência no cargo na história da Inglaterra, não se enganou sobre o sentido da Primeira Guerra Mundial, que inauguraria um período de trevas por três ou quatro gerações.

Ela iria marcar também o verdadeiro início do século atual, não no sentido cronológico, mas no espírito de uma era dominada por conflagrações mundiais, revoluções implacáveis, confronto ideológico, campos de extermínio. Eric Hobsbawm cunhou a expressão “o curto século 20” para descrever justamente o período que vai do início da guerra, em 1914, à queda do Muro de Berlim, em 1989. Em outras palavras, com o fim da alternativa comunista e da heterogeneidade ideológica, terminaria igualmente o século naquilo que ele tinha de mais característico: a radical oposição de sistemas inconciliáveis.

Mas, se desaparece a possibilidade de optar por um sistema completamente diferente de organizar a economia e a vida política, como ocorria em relação ao nazi-fascismo, ao stalinismo, ao maoísmo, será que desaparecem ao mesmo tempo os males que eram associados a esses regimes? Assisti há dias na BBC à entrevista na qual um autor dizia que, dos oito maiores massacres registrados em toda a história humana, nada menos de sete tinham acontecido neste século. O entrevistado não dizia quais eram, mas fiquei a perguntar-me se o último não seria o de Ruanda, portanto, já na era pós-ideológica.

De qualquer forma, não é a classificação aritmética dos massacres que importa, mas sim que eles continuem a ser perpetrados mesmo nesta fase que deveria ser dominada pelo binômio democracia política-economia globalizada. Indício de que, se é verdade, como pretende Hobsbawm, que a década de 90 não é a última do século, mas a primeira do seguinte, ela é cortada quase ao meio por inconfundível divisor de águas.

A metade inicial foi a base das ilusões, do “fim da história”, da transição sem violência do socialismo ao capitalismo, da desagregação pacífica da União Soviética, da ação unânime do Conselho de Segurança na Guerra do Golfo, da nova ordem internacional anunciada por Bush, do entusiasmo ingênuo pela liberalização, a globalização, o fim da Rodada Uruguai, a fundação da Organização Mundial do Comércio, o milagre dos Tigres Asiáticos.

A segunda metade tem sido a era dos desenganos, do genocídio em Ruanda, dos massacres e da limpeza étnica na Bósnia, no Kosovo, em Timor Leste, na Tchetchênia, na África um pouco por toda a parte, da guerra “limpa” da Otan sem o aval da ONU, dos inquietantes sinais de convulsão e desespero na Rússia, das primeiras bombas nucleares e foguetes balísticos na Índia e no Paquistão, da repetição a intervalos cada vez menores de desastrosas crises monetárias e financeiras no México e na Argentina, em 1995, na Ásia, na Rússia, no Brasil, em 1997-1998, na reação popular contra a globalização levando à paralisação das negociações sobre investimentos na OCDE e culminando com os protestos de rua e o fiasco de Seattle.

É óbvio que essas metades não existem em estado quimicamente puro e que impurezas de uma se misturam às vezes em meio à outra. No essencial, contudo, a descrição corresponde à realidade: à medida que avança a década, aumenta o teor de incerteza, de crise, de violência.

Pode ser que o contraste entre as duas não tenha maior significado do que a repetição incessante do ciclo de altos e baixos, de luzes e trevas, que atravessa toda a história. A circunstância de ser a última pior do que a primeira não passaria assim de aspecto temporário, prestes a mudar para melhor a qualquer momento. Não deveria ser interpretada necessariamente como a antecipação do que nos aguarda no futuro, da mesma forma que a Primeira Guerra veio a ser considerada como o primeiro ato de prolongada etapa de escuridão e horrores.

A falta de perspectiva, de distância crítica, não nos permite adivinhar agora o sentido das coisas vindouras. Michel Camdessus lembrava numa conferência que, em seu tempo de colegial, era costume pedir na França aos estudantes de liceu redação sobre o tema “Quando começou de fato o século 20?”. Teria sido em 1900 ou 1901, pelo critério cronológico, em 1914, pelo da mudança histórica, em 1907, quando Picasso pintou as “Demoiselles d’Avignon”, ao que se poderia acrescentar 1905, quando o jovem Einstein publicou a Teoria Especial da Relatividade? O que existe de comum entre eventos em aparência tão disparatados?

Todos eles e alguns mais, como a psicanálise de Freud, a música dodecafônica de Schoenberg e Alban Berg, a obra de Kafka, Proust, Joyce, a produção de automóveis em massa, o avião e o entusiasmo pelo cinema, começam a tomar forma ou a consolidar-se nos primeiros anos verdadeiramente inovadores, revolucionários, do século que passaria a ser definido por essas mudanças. Só mais tarde, porém, muitos deles viriam a ser reconhecidos pelo seu impacto transformador em profundidade e duração.

Camdessus confessava não ser capaz, mesmo naquele momento, de declarar quando havia começado o século 20. Não hesitaria, ao contrário, em afirmar que o século 21 tinha tido início quando uma decisão puramente nacional, a desvalorização da moeda mexicana, havia desencadeado uma crise nos mercados financeiros mundiais, demonstrando como a globalização criara um mundo no qual tudo o que era nacional passava a ser relevante em termos globais e vice-versa. Isso era antes da crise asiática, que daria força ainda maior a essa observação.O diretor do FMI alinhava-se, portanto, com o historiador marxista Hobsbawm, ao partilhar a percepção de que já deixamos o século 20 para trás e, ao contrário do que pensam os que se preparam para o réveillon do milênio, há algum tempo estamos vivendo o pós-século 20.

Sabemos muito bem que todas as tentativas de cortar em fatias o fluxo perpétuo do tempo não passam de exercícios arbitrários e que séculos ou décadas são divisões quantitativas, astronômicas, no mais das vezes sem maior consistência ou lógica interna. Como tudo o que flui e corre, o rio do tempo é sempre velho e novo. É velho porque é sempre água o que escoa; é sempre novo porque a água não é a mesma e às vezes ela transporta algum tronco ou galho caído.

Braudel compreendeu que existem vários possíveis “tempos do mundo”: o dos acontecimentos de curto prazo, o da conjuntura, o da estrutura, o dos ciclos seculares, de longa duração. O que os distingue é a composição, em doses variáveis, de mudança e continuidade, os acontecimentos consistindo quase só em mudança, enquanto nos ciclos seculares predomina a continuidade. É a essa luz que tenciono continuar a refletir com os leitores a respeito de um século que termina (ou começa) com protestos em Seattle e fogo de artilharia em Grozni, desmentindo a previsão de T.S. Eliot quando ele escreveu:

“Assim termina o mundo / Não com estrondo, mas com gemido”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 19/12/1999.