Evito falar do que faço nas Nações Unidas por temer que não interesse ao leitor brasileiro. Não faltam, afinal, problemas terríveis ao Brasil, o que tende a criar certa indiferença pelos alheios. Alguns dos nossos exercem, aliás, uma espécie de fascínio mórbido e totalizador sobre a opinião pública. Veja-se, por exemplo, o espetáculo da decomposição das instituições parlamentares, que recomeça a cada manhã, mas jamais atinge o desenlace. É como em certos filmes-pesadelo de Buñuel, “O Anjo Exterminador”, em que não se consegue transpor a saída ou, pelo inverossímil dos desdobramentos, “O Discreto Charme da Burguesia”.
Toda essa abjeção moral parece ainda mais deplorável vista de Bruxelas, onde me encontro como secretário-geral da 3ª Conferência das Nações Unidas sobre os Países Menos Avançados. Os PMA ou LDCs, a sigla em inglês (Least Developed Countries), são a meia centena de nações atoladas na mais desesperançada miséria, o coração da pobreza mundial. Para ser exato, são 49, das quais 34 africanas. A maior delas, Bangladesh, fica na Ásia, continente em que estão algumas outras: Mianmar (a antiga Birmânia), Camboja, Laos, Nepal, Butão e certas ilhas do Pacífico. A fim de habilitar-se a essa qualificação, é preciso ser muito pobre mesmo. Tanto assim que, no inteiro continente americano, onde o que não falta é privação e esqualidez, só um país dentre 34 é PMA: o Haiti.
Quando se inventou a categoria, há um quarto de século, foi com a idéia de mobilizar a ajuda internacional para rapidamente “graduar” os países nela incluídos, fazendo desaparecer a classe. Os membros originais eram uns 25 e o número desde então quase dobrou. Só um foi “diplomado”, Botsuana, graças aos diamantes. Em compensação, muitos que não estavam caíram no fosso, alguns como Angola, devido à guerra civil, outros em razão do colapso dos preços dos produtos primários e da explosão demográfica, como Senegal, que ingressou no grupo em janeiro.
A lista desses países e a das nações de guerra civil crônica, com episódios atrozes de genocídio, é quase coincidente: Afeganistão, Angola, Burundi, Camboja, Libéria, Serra Leoa, Somália, Ruanda, Moçambique. Dois deles, o Afeganistão e Moçambique, perderam mais de 1 milhão de vidas cada na guerra civil e a soma das vítimas nos outros chega a vários milhões. Não por acaso são os países mais afetados por catástrofes naturais _1.200 na última década; alguns como as ilhas do Pacífico e as zonas costeiras de Bangladesh estão ameaçados de desaparecer, como a Atlântida da lenda, tragados pela elevação do nível dos oceanos devido ao aquecimento da atmosfera.
Uma vez que se tomba na armadilha da pobreza extrema, a miséria tende a autoperpetuar-se. A renda dessa pobre gente é tão próxima da subsistência que não lhes deixa quase excedente para investir: o nível de poupança anda por volta de 15% do PIB ou menos. São, por isso, forçados a endividar-se além da conta e, mesmo quando cessam de pagar ou de receber recursos, a dívida não pára de crescer, alimentando-se do acúmulo dos atrasados. Essa situação afugenta, por sua vez, os investidores, e o ciclo infernal recomeça.
A fim de rompê-lo, seria indispensável crescimento de 7% ou 8% sustentado por duas décadas, com ingresso de recursos a título de ajuda que representassem ao menos o dobro dos atuais. Em vez disso, durante a década de 90, o crescimento médio foi de apenas 0,9% anuais, que se reduzem a 0,4% quando se exclui Bangladesh. Quase a metade do grupo, 22 países, atravessou a década ou estagnada ou em retrocesso. Desses últimos, 11, todos em guerra civil, conheceram recuos de 3% negativos durante dez anos!
É por isso que os 630 milhões de habitantes do PMA, um décimo da população mundial, correm o risco de se ver condenados à perpétua prisão desses bolsões de miséria, sem a menor chance de atingir as metas fixadas pela ONU para 2015 com vistas a reduzir a pobreza pela metade, dobrar os alunos da escola primária ou diminuir a mortalidade infantil em dois terços.
Embora muito longe do desenvolvimento ainda, o Brasil não pode ser insensível ao sofrimento dos PMA, sobretudo de nossos irmãos da África. Todas as nações africanas de língua portuguesa pertencem a essa categoria e o mesmo sucederá a Timor quando chegar à plena autonomia. Parte extremamente significativa de nossa população descende dos 4 milhões de mulheres e homens africanos forçados a vir para cá, a fim de construir em boa medida a infra-estrutura e a economia do país. Não é preciso lembrar que, de Aleijadinho e do pintor Ataíde ao padre José Maurício e Carlos Gomes, de Gonçalves Dias e Machado de Assis a Cruz e Souza e Lima Barreto, de Pixinguinha e João da Baiana a Cartola e Nelson Cavaquinho, a cultura brasileira não seria sombra do que é sem o aporte da África. Não será essa também uma dívida de honra, apesar de sua natureza humana, não-financeira?
Em gesto que, como diria o barão do Rio Branco, fica bem ao Brasil e é digno do povo brasileiro, o presidente cancelou a dívida do sofrido Moçambique. Teremos na conferência os ministros Celso Lafer e Ronaldo Sardemberg, que nos ajudarão a mostrar que o Brasil pode contribuir para as soluções dos problemas dos pobres entre os pobres, partindo de sua própria experiência da pobreza. Um exemplo é a adaptação às condições africanas dos programas de bolsa-escola e renda mínima, dos quais tenciono tratar proximamente.
No dia em que comemoramos a tardia abolição da perversão que fez o país nascer errado, é bom recordar do critério do julgamento pelo qual todos, indivíduos, nações e mundo, seremos julgados: como tratamos os mais débeis e vulneráveis dos nossos irmãos.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 13/05/2001.