Fabricio del Dongo, o duvidoso herói de “A Cartuxa de Parma”, só tem uma obsessão ao escapar ferido da barafunda medonha em que se metera por querer participar da glória de Napoleão: saber se as peripécias confusas de que sobrevive tinham sido uma batalha de verdade e, em caso afirmativo, se essa havia sido a famosa batalha de Waterloo.
Nós outros que conseguimos voltar de Seattle temos a vantagem de saber que estivemos numa batalha, embora certamente menos gloriosa que a napoleônica. Só não temos muita segurança do que realmente se passou. Nisso estamos, aliás, na excelente companhia de Stendhal, que observava em seu diário a propósito do combate de Bautzen: “Do meio-dia até três horas da tarde pudemos enxergar muito bem tudo o que se pode ver de uma batalha, isto é, nada.”Agora que se dissipou o gás lacrimogêneo, se calaram as sirenas (e o chefe de polícia pediu demissão), está na hora de tentar compreender. O que não é nada fácil, pois tratou-se de uma debandada e, de acordo com outra conhecida verdade militar, “a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã”.
Os que mais se vangloriam da paternidade, as ONGs, os sindicatos organizadores do movimento de rua, são até os menos dignos de fé. Barulho fizeram e muito. Será, contudo, que foram sozinhos os principais responsáveis pelo desfecho? Nada menos certo.Sem que elas sejam mutuamente excludentes, é possível distinguir três ou quatro camadas de razões que explicam cumulativamente o que houve, e sobretudo, o que não houve.
A primeira e decisiva é a das causas imediatas, que se resumem, como quase sempre em tais casos, à impossibilidade do acordo entre os dois grandes, Estados Unidos e Europa. A divergência dessa vez foi de novo em relação a um dos objetivos centrais da negociação agrícola: a eliminação ou apenas a redução “substancial” dos subsídios à exportação de produtos nesse setor.
Houve ensaios de compromissos, pelos quais os europeus aceitariam formulação mais ambiciosa para os subsídios e até se disporiam a negociar sobre os alimentos transgênicos, do interesse dos americanos, enquanto estes se resignariam a ampliar o escopo das negociações com a inclusão de investimentos e competição. A transação acabou não se completando e a agricultura voltou a ser, como já ocorrera várias vezes na Rodada Uruguai, a principal responsável pelo impasse.
Principal, mas não a única, pois houve outras discordâncias sérias, dentre as quais a obstinada recusa dos EUA em aceitar submeter a maior disciplina o uso ou abuso do antidumping, reivindicação do Japão e mais de 20 outros países (o Brasil tem sido vítima particular de tal abuso, em aço especialmente).
Por debaixo dessa camada superficial esconde-se outra, mais suspeitada que detectável com certeza. É a desconfiança de que, não podendo introduzir a possibilidade de retaliações comerciais como castigo contra supostas violações de normas trabalhistas (o trabalho de crianças, por exemplo), alguns setores oficiais americanos não desgostariam de ver fracassar a reunião. A explicação é que um êxito em tais condições alienaria o apoio, inclusive financeiro, dos poderosos sindicatos da central AFL-CIO, indispensável à campanha eleitoral do vice-presidente. Ao menos é o que diz em editorial de rara virulência o “Wall Street Journal”, que acusa o presidente de haver premeditadamente sabotado as negociações ao fazer exigências que sabia inaceitáveis.
Abandonando esse arriscado domínio das conjeturas sobre intenções subjetivas (que afinal só deslindaremos no Juízo Final), passamos à terceira camada, a da natureza do processo decisório. Este nunca se caracterizou no GATT ou na sua sucessora, a Organização Mundial do Comércio (OMC), pela abertura, transparência, equidade ou inspiração democrática. Do célebre binômio “democracia-economia de mercado” que simbolizaria o fim da história, as potências comerciais gostam mais do segundo termo que do primeiro. No que se refere ao mecanismo das decisões, são elas mais chegadas ao que no velho Partidão se denominava “centralismo democrático”. Ou, traduzido na chula linguagem da tradição luso-brasileira, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Desta feita, porém, a dose foi cavalar e veio misturada com desorganização e balbúrdia tais que ateou o fogo da revolta no coração normalmente submisso dos humilhados e ofendidos. Assim, mesmo se tivesse havido a famigerada “conciliação das elites”, em detrimento do interesse dos países em desenvolvimento na questão trabalhista ou em relação aos problemas com a implementação de certos acordos da Rodada Uruguai, é possível que a tentativa de impor consenso artificial se tivesse afinal defrontado com a rebelião das massas. Pode ser, mas aqui teremos também de esperar pelo dia do Juízo, a fim de tirar a dúvida, já que nunca se chegou a esse ponto. A referência neste caso deve ser a outra peleja, a da batalha de Itararé, “que não houve”.
A última e mais profunda das camadas é a da verdadeira insurreição das massas, as que saíram às ruas para mostrar pela ação que até no país mais rico do mundo há quem não se resigna à suposta inevitabilidade dos aspectos mais perversos da globalização. Essa gente não conseguiu impedir que os poderosos tentassem novamente reproduzir o processo viciado de ocasiões anteriores, mas criou com o protesto a atmosfera que denunciou a falta de legitimidade desse processo. Fica difícil, com efeito, esbulhar os países mais pobres dentro da sala de convenções e, ao mesmo tempo, desafiar as milhares de pessoas que se manifestam às suas portas. Não há consenso nem dentro, nem fora e, na sua ausência, não basta o consenso interesseiro dos mercados financeiros para dar cobertura ao oportunismo dos que lhes querem servir de instrumento, simulando estar a serviço dos ideais de uma liberalização comercial supostamente favorável aos países e indivíduos marginalizados por esse mesmo sistema. É por isso que, apesar das piruetas verbais de terceiras ou quartas vias, a cada dia se torna mais complicado tomar decisões econômicas importantes, como se viu nas negociações sobre investimentos na OCDE, no ano passado e agora se repetiu, primeiro em Genebra, depois em Seattle.
As ruas querem desesperadamente enviar sua mensagem. Seria perigoso teimar em não lhe dar ouvidos. Nesse sentido, foi melhor que o embate de Seattle tivesse terminado como terminou, pois como disse apropriadamente Wellington, o vencedor de Waterloo, “a pior desgraça depois de uma batalha perdida é uma batalha ganha”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 12/12/1999.