Que tal, em termos de Antiguidade, visitar país fundado por Ismael, pai dos árabes, filho de Abraão com a escrava Agar e cuja capital reclama Noé como ancestral? Refiro-me ao Iêmen, terra da Rainha de Sabá e dos Reis Magos, a “Arábia Félix” dos romanos porque um pouco mais chuvosa, berço das plantas cuja resina produz o incenso e a mirra, ao qual devemos a primeira marca mundial do nosso café (“Moca” é o nome de um porto iemenita).
De 893, pouco depois de Carlos Magno, até 1962, ano da crise dos mísseis em Cuba, o país teve uma só dinastia, sucedendo-se no trono 66 imãs, todos descendentes de Ali, casado com a filha do Profeta. No norte, as ferozes tribos montanhesas jamais deram quartel aos turcos e outros aspirantes a conquistadores. Aden, no tórrido sul, após derrotar muitos invasores, dentre os quais Afonso de Albuquerque (nos “Lusíadas”, o “Albuquerque terrível”), acabou dominada pelos ingleses, devido ao valor estratégico como boca do mar Vermelho e elo entre o canal de Suez e a Índia. Lá se pode ver ainda a casa de onde Arthur Rimbaud, que chamava o lugar de “forno do inferno”, partia para conduzir seu misterioso tráfico de armas na Etiópia.
A insurreição contra o último imã abre longa guerra civil, com as monarquias do Golfo, de um lado, e o Egito de Nasser, do outro. Só nos últimos anos, as duas metades se reunificam e o sul abandona o regime marxista. Descobriu-se algum petróleo, muito menos que nos vizinhos. O suficiente para permitir que o país deixasse de exclusivamente depender da ajuda externa. O Iêmen continua, no entanto, um dos mais indigentes países do mundo, com altas taxas de natalidade, mortalidade infantil e mortes de mulheres devido ao parto.
Aqui, como no Irã, de onde vim, o problema é o mesmo: como tirar partido, se possível, ou, na pior das hipóteses, não ser destruído pelo onda globalizadora que submerge o mundo? Alguns pontos são comuns: ambos são países islâmicos que recentemente derrubaram a monarquia, mas enfrentam, no caminho da modernização, tenazes e ameaçadoras resistências provenientes das forças religiosas e tradicionais. O Iêmen dispõe, é claro, de muito menos trunfos do que seu grande vizinho. Fora um pouco de petróleo, não desfruta de quase nenhum recurso natural, a não ser o potencial de pesca e turismo. Viveu durante muito tempo das remessas de sua mais abundante riqueza: a mão-de-obra que exportava à Arábia Saudita e outros primos da região, abastados em petróleo, mas escassos em gente. Durante a Guerra do Golfo, o Iêmen tomou o partido do Iraque e 1,3 milhão dos seus trabalhadores foram expulsos pelos sauditas. A demanda agora é por operários qualificados, mercadoria rara em nação onde só havia 20 mil alunos em 1962 nas escolas primárias (hoje os estudantes em geral são mais de 3 milhões em população de 20 milhões, mas tomará tempo elevar o nível geral).
Minha visita fez parte de projeto para ajudar os iemenitas a lidar com o comércio e os investimentos; mais especificamente a fim de treinar recursos humanos capazes de conduzir as complexas negociações para a adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC). Para esse fim, organizamos também um simpósio com as mais subdesenvolvidas e pobres entre as nações muçulmanas: Sudão, Mauritânia, Djibuti, Comores, palestinos.
O problema do comércio ilustra um dos aspectos de um dilema maior. Escolher o “status quo” do relativo isolamento significa arriscar-se a agravar a marginalização de que sofrem já esses países. A alternativa de liberalizar a economia tampouco oferece muita promessa de êxito. Que podem, de fato, esperar de um sistema de concorrência mais desenfreada economias extremamente frágeis, de base produtiva reduzida a poucos produtos, sem grandes recursos naturais ou tecnologia?
É, elevado a uma potência enorme, o dilema de todos os subdesenvolvidos, nós inclusive, diante da pressão globalizadora. A diferença é que eles têm chances incomparavelmente menores e enfrentam dificuldades que fazem as nossas parecer brincadeira. Lembro, por exemplo, a entrevista que tive com o presidente do Parlamento. Xeque e líder de uma das duas grandes coligações de tribos iemenitas, recebeu-me como numa corte oriental, cercado de conselheiros, todos como ele, com turbantes, túnicas e a “jamba”, a adaga de prata ricamente trabalhada à cinta (a maioria anda na rua desse jeito).
Percebia-se que estava perfeitamente consciente de que a modernização seria a morte para tudo aquilo que ele representava. Quando me acompanhava até a porta, chegava outro chefe beduíno, que lhe beijou a mão e a face, os dois majestosos no ar natural de autoridade, queimados do sol do deserto, de barbas brancas e bastão de mando à mão. Tive a sensação de assistir ao encontro de dois patriarcas do Antigo Testamento.
Tem-se a mesma impressão de contemplar uma das antiquíssimas cidades bíblicas, Jericó talvez, ao visitar a capital, Sanaa, com parte de suas muralhas intactas, a arquitetura de sonho, as casas altas com torres de até cinco ou sete andares, em pedra ou tijolo, todas enfeitadas com arabescos, grades de gesso branco esculpidas como pano de renda contra o pano de fundo do vermelho, azul, verde e marrom das janelas e muros. O bazar em que se compram o incenso, os perfumes dos oásis. Os homens mascando o “kat”, folha como a da coca, de efeito narcotizante. De vez em quando, cena inesperada: um iemenita barbudo, vestido com o garbo tradicional, berra no telefone portátil, sob os olhares de suas quatro mulheres cobertas de véu negro da cabeça aos pés… Deve tratar-se de tradicionalista rico, pois já se torna raro praticar a poligamia (é dispendioso obedecer ao Corão, que exige, com efeito, dar a todas as mulheres o mesmo tratamento). O que mostra que se pode consumir a tecnologia de ponta sem mudar de alma. Mas será que se pode também, sem transformação do sistema de valores, da estrutura de relação de poder, ir além, inventar, inovar, criar tecnologia? O Islão, que inventou tanta coisa, inclusive a álgebra, defronta-se agora quase com a quadratura do círculo: como se modernizar sem ocidentalizar-se. Será possível?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26/11/2000.