No momento em que a desaceleração econômica cortou pela metade o crescimento do comércio mundial, o anúncio das medidas americanas sobre o aço é um sinal preocupante dos perigos que se agravam para países como o Brasil, em negociações ou fora delas.

Ninguém esperava de fato que um governo do partido republicano, normalmente o campeão do livre comércio, não só endossasse a causa de um dos lobbies mais notoriamente protecionistas dos EUA como o fizesse de maneira particularmente ameaçadora. Até agora, a proteção ao setor siderúrgico vinha sendo assegurada mediante as investigações sobre antidumping e subsídios. Embora altamente pernicioso, esse processo exigia ao menos o esforço de provar que o aço importado estava sendo vendido a preço artificialmente baixo ou se tivesse beneficiado de subsídio do governo.

Desta vez, invoca-se o artigo 201 da lei comercial (“Fair Trade Act”); bastará concluir que o aumento das importações é a causa das dificuldades da indústria para justificar a imposição de barreiras. Alega-se que 18 empresas quebraram nos anos recentes porque as importações saltaram de uma média de 15 a 30 milhões de toneladas anuais para cerca de 38 milhões, aproximadamente 25% do consumo.

O que não se diz é que esse aumento tem muito a ver com a força do dólar, a voracidade da demanda por importações, que continua a agravar o déficit comercial americano e, em 1998, o colapso da economia asiática, responsável pelo desvio para o mercado dos EUA do aço antes destinado à Ásia.

O recurso ao artigo 201 era a reivindicação maximalista do lobby. O governo preferia tentar acordo entre os produtores para limitar a oferta. Rendeu-se ao lobby depois que a reviravolta no Senado deu a presidência da Comissão de Finanças ao senador democrata Max Baucus, que se preparava para iniciar, ele mesmo, a investigação do artigo 201. O que está em jogo é o apoio político e eleitoral nos Estados em que se concentram muitos dos 175 mil empregos mais precários da siderurgia: Ohio, Indiana, Pensilvânia, Virgínia Ocidental.

A primeira lição do episódio é que, se hoje 40% da produção mundial de aço é exportada (em contraste com só 25% em 1975), isso se deve ao comércio liberalizado e à globalização da produção, duas tendências fortemente impulsionadas pelos Estados Unidos. O mínimo que se pode dizer é que não é coerente querer beneficiar-se dessas forças na maioria dos domínios e tentar limitá-las em outros.

Uma segunda conclusão é que as teorias não resistem ao interesse nacional quando ambos se chocam. Enquanto fomos nós a desejar restringir a superprodução e excesso de oferta em café ou cacau, os americanos denunciaram a ilusão de pretendermos contrariar as leis do mercado, concorrendo para sabotar os acordos de matérias-primas, dos quais se retiraram. Quando se trata, porém, do alumínio, em que, em 1994, o atual secretário do Tesouro, então presidente da Alcoa, comandou com êxito acordo envolvendo cinco países produtores e a União Européia, as coisas mudam de figura. Segundo algumas versões, o artigo 201 seria o cacete para tornar apetecível a cenoura, isto é, as negociações entre 36 países, a fim de cortar o que os americanos alegam ser um excesso de capacidade mundial de produção.

Outros não estão convencidos e pensam que, se há capacidade sobrando, isso ocorre provavelmente em países de custos elevados, como os EUA. Por que então não deixar a solução ao mercado, fechar as fábricas, fundi-las e importar a diferença? Não é esse o destino que o mercado impõe às “sunset industries”, as indústrias em crepúsculo, como a têxtil, a de calçados, a siderúrgica, que não podem mais continuar a produzir nas nações riquíssimas, pós-industriais? Ou querem elas não só dominar os setores de ponta, a tecnologia sofisticada, os serviços eletrônicos e de telecomunicações como, ao mesmo tempo, preservar, com protecionismo e subsídios, o domínio em agricultura e indústrias de mão-de-obra intensiva?

Nesse caso, o que sobraria para países como o Brasil? O aço é possivelmente, com a celulose, o suco de laranja, o frango, um dos poucos setores nos quais dispomos de competitividade indiscutível. Se não podemos fazer valer essas vantagens em negociações na Alca ou em Genebra, como poderíamos aceitar a abertura proposta pelos americanos? Esses desejam incluir nas próximas negociações da Organização Mundial de Comércio (OMC) as tarifas industriais, propondo zero de barreiras em mais de uma dezena de categorias de produtos, que vão dos brinquedos aos produtos químicos. Como levar a sério tais propostas, no momento em que o aço, componente básico de tantas mercadorias industriais, é objeto de tamanhas restrições?

Todas essas indagações resumem-se, no fundo, a uma só questão crucial que está no coração do debate sobre os desequilíbrios e as injustiças do atual sistema mundial de comércio: se os ricos não deixam espaço aos pobres para produzir e competir em alguns setores, como poderão esses últimos pagar as importações de bens de capital e tecnologia provenientes dos primeiros?

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 17/06/2001.