Os três homens mais ricos concentram fortuna superior ao tamanho da economia dos 48 países mais pobres do mundo. Esse é o contraste mais escandalosamente inaceitável das contradições que caracterizam o nosso tempo.

De um lado, a formação de espaços continentais como a União Européia; do outro, o recrudescimento do particularismo nacionalista, dos bascos, da Liga Norte, dos albaneses do Kosovo. As gigantescas fusões de empresas transnacionais, bancos, companhias farmacêuticas ou automobilísticas, em contraponto com a contínua criação de milhões de pequenas ou minúsculas empresas. Os colapsos de grupos financeiros especulativos que controlam centenas de bilhões de dólares, ao mesmo tempo que a proliferação dos microbancos, emprestando somas modestas e permitindo o nascimento de verdadeira poeira de negócios familiares.

O global que não consegue sufocar o local. A permanente tensão dialética entre o poder excessivo, político ou econômico, que não tolera limites e quer encher todo o universo e a resistência silenciosa e tenaz dos pequenos, que se associam e põem em comum criatividade e esperança.

Em artigo da semana passada, comentei como grupos da sociedade civil organizada, as organizações não-governamentais (ONGs), haviam prevalecido sobre os governos mais poderosos da Terra, a principiar pelo americano, em três episódios marcantes: o tratado proibindo as minas, que aleijam e deformam crianças e mulheres, quando não as matam; o estabelecimento do tribunal para criminosos internacionais e a campanha contra o código mundial de investimentos.

Esses casos desmentem a afirmação derrotista de que certo tipo de globalização é inevitável e irresistível, que diante da suposta onipotência das hegemonias só nos resta a passividade da resignação. Há espaço para uma espécie de reinvenção da democracia direta dos gregos, pela qual a sociedade organizada intervém sempre que as instituições “representativas”, Congresso ou Executivo, deixam de funcionar como deviam. Eles revelam, contudo, algo mais: que existe enorme possibilidade de afirmação de iniciativas individuais ou locais de qualidade muito superior à dos governos ou megaempresas.

A organização da ONU para a qual trabalho, a Unctad, reconheceu o potencial da sociedade civil e do setor privado e realizou esta semana, em Lyon, conferência absolutamente original que reuniu mais de 2.000 pessoas, não para discutir vírgulas e letras de documentos de papel, aprovar declarações altissonantes destinadas ao pó das prateleiras. Não perdemos nenhum segundo sequer com discursos que nos afastassem do essencial: começar parcerias efetivas em torno de projetos concretos em áreas que vão do comércio eletrônico à promoção de investimentos, da administração das flutuações de preços das matérias-primas ao treinamento de pessoal especializado em negociações comerciais, dos microbancos ao uso dos recursos da floresta para gerar novos produtos farmacêuticos.

A idéia básica desses projetos é sempre a mesma: promover o casamento entre grandes empresas, de um lado (o global), com as pessoas simples, pobres, de comunidades organizadas (o nível local), ajudadas por universidades e ONGs, a fim de criar empregos, gerar renda e proteger o meio ambiente.

Exemplo interessante da aplicação do conceito é a Iniciativa Biotrade, para desenvolver novos medicamentos, óleos, cosméticos ou corantes, a partir de recursos genéticos da natureza, para criar mercado no exterior para frutas, sucos, legumes da Amazônia. É tentativa de dar conteúdo econômico realista à Convenção sobre a Biodiversidade, assinada há seis anos na conferência ambiental do Rio, mas que não teve muita aplicação prática. Trata-se agora de aproveitar o conhecimento tradicional de índios ou dos habitantes das regiões ricas em diversidade para gerar descobertas cujos benefícios reverterão para essas comunidades.

Para alegria nossa, o Brasil esteve representado com vigor, não pelo governo (trabalhamos pouco com os governos e esperamos deles ainda menos), mas pela sociedade civil e o setor privado. Uma das nossas parcerias foi celebrada com o Poema, belo nome que significa Pobreza e Meio Ambiente na Amazônia, da Universidade do Pará, a que está associada, desde o início, a professora Nazaré Imbiriba. Lançamos com eles a Bolsa Amazônia, a fim de promover o comércio de produtos ecológicos que contribuam a proteger e não destruir o ecossistema amazônico.

Duas grandes firmas transnacionais participaram do esforço, a Mercedes e a empresa química Henkel. A Mercedes-Benz já desenvolve, em Marajó, com o Poema, a fabricação de encostos para cabeça e assentos de veículos produzidos com fibra de coco e látex, em benefício de 2.000 famílias.

Com o Banco Axial, de São Paulo, iniciamos parceria para tornar realidade o Permanent Trust Fund for the Amazon, fundo de investimento para apoiar o Programa de Ecologia Molecular. O projeto se inspira no Alaska Permanent Fund, lançado há 20 anos, que atinge hoje a capitalização de US$ 27 bilhões.

Vamos igualmente trabalhar com a Universidade de Chicago, onde contamos com a orientação de uma das maiores antropólogas brasileiras, a professora Manuela Carneiro da Cunha, assim como da Universidade Rutgers, centro de excelência mundial em pesquisas de biologia molecular.

O desafio é mostrar que o mercado pode ser posto a serviço da proteção da vida, que a globalização das transnacionais pode aliar-se às comunidades locais para eliminar a pobreza, sem caridade, mas na busca de um lucro legítimo e compartilhado. É a esperança de que, desta vez, o conhecimento sirva não à dominação, ao agravamento das disparidades, mas à igualdade, à liberação dos seres humanos.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/11/1998.