Lua cheia do final de fevereiro. É a festa que lembra a primeira vez em que mais de 1.200 discípulos se congregaram espontaneamente para ouvir Shakiamuni. O Buda enviou-os a pregar a iluminação que nasce da renúncia à cobiça, à exploração, ao desejo.

Os monges da Tailândia _são cerca de 300 mil_ saem nesse dia para pedir alimento. No sábado, 19, de manhãzinha, participei da cerimônia. Diante de nós desfilava longa linha de açafrão, monges vestidos de todas as cores do sol. Estendiam-nos tigelas com tampas em que púnhamos um saquinho de arroz, uma garrafa de água, um punhado de “curry”, algumas bengalinhas de incenso, envelope com algum dinheiro, um ramo de orquídeas.

Silenciosos ou murmurando preces, não nos agradeciam. Com efeito, esses dois gestos rituais são chamados aqui de “dar comida” e “ganhar mérito”. Isto é, ao oferecer comida, somos nós que adquirimos o mérito. O monge não tem nada, mas por isso mesmo é um iluminado. Nós, que nos esfalfamos atrás de ilusões, só deles é que podemos receber o sentido da vida. Nós é que temos de agradecer pelo privilégio de dar algo de pouco valor aos iluminados.

Foi uma parábola perfeita do que tentamos alcançar na conferência da Unctad em Bancoc: devolver à economia global o sentido de interdependência que ela perdeu na arrogância triunfalista da vitória na Guerra Fria. A noção de que, não só pelo sentimento ético de equidade, mas por auto-interesse, a economia funciona melhor quando existe solidariedade entre empresários e trabalhadores, países avançados e subdesenvolvidos.

Nesse sentido, um dos grandes momentos da reunião foi quando a professora Frances Stewart, da Universidade de Sussex, desmontou o mito de que é inevitável, na fase inicial do desenvolvimento, aumentar a concentração da renda a fim de possibilitar a acumulação de capital. O exame rigoroso de numerosos casos históricos revela que não há, na verdade, nenhuma correlação empírica entre crescimento econômico e agravamento da distribuição da renda. Ao contrário, são muitas as provas de que desenvolvimento e repartição generosa dos resultados se reforçam mutuamente por razões políticas e econômicas. Políticas porque regimes repressivos e ditatoriais tendem a favorecer a corrupção, a ineficiência, a falta de autocrítica na prática de erros monumentais de orientação econômica. Além disso, cada vez se torna mais evidente que a distribuição equitativa estimula o investimento em educação, saúde, recursos humanos. A natalidade se modera, o mercado consumidor se expande, a produtividade, a criatividade se enriquecem devido ao aprimoramento cultural.

É esse gênero de estreitamento das distâncias separando posições antagônicas e dogmáticas o que mais se viu na conferência. Camdessus dizendo que a pobreza é a pior ameaça sistêmica, o presidente da Argélia, Bouteflika, lembrando que é preciso promover a democracia, a economia privada, combater a corrupção.

Todos concordaram em que o Consenso de Washington já era. Ninguém, contudo, tentou trocá-lo por outro consenso igualmente artificial e fugaz. Reconheceu-se que o fim da Guerra Fria desencadeou movimento em que, a partir de extremos opostos, se converge rumo a terreno comum sempre mais largo. Em alguns casos, a dinâmica orienta-se a postulados mais liberais: abertura do comércio e das finanças, integração com os mercados globais, superioridade da empresa privada sobre a estatal, necessidade de sólida base macroeconômica.

Em outros, o pêndulo inclina-se por visões críticas da hegemonia liberal: a instabilidade inerente ao capitalismo, a conveniência de controles para reduzir a frequência e a intensidade das crises monetárias e financeiras, a propensão do regime capitalista a acentuar a desigualdade e a condenar países e continentes à marginalidade, sua tendência a negligenciar a pobreza.

Todavia em cada um desses domínios houve a preocupação de não generalizar, de fugir do simplismo deturpador, de guardar o sentido da proporção e dos matizes. Assim, por exemplo, buscou-se salientar que, na integração aos mercados globais, o que conta é a qualidade, não a quantidade e rapidez de uma integração precária e subserviente. Da mesma forma, a privatização não deve ser fim em si mesma, e sim o meio de reforçar a capacidade tecnológica da economia, não um mero expediente para aliviar o aperto de caixa, mas instrumento para melhorar a qualidade dos serviços à população e redistribuir a riqueza criada pelo esforço coletivo.

Apesar da tentação constante de substituir um receituário por outro, recordou-se a cada momento a complexidade do fenômeno do desenvolvimento, sua extraordinária diversidade no tempo e no espaço e, daí mesmo, sua inadequação a reducionismos empobrecedores. Em lugar de tentar congelar em fórmulas estáticas o movimento em curso atualmente, o debate procurou capturar o sentido das tendências que vêm aproximando os pólos antinômicos das dicotomias clássicas: Estado versus mercado, estabilidade de preços contra expansão econômica, flexibilidade do trabalho ou proteção do emprego, dirigismo em vez de livre empresa, capital nacional contra o estrangeiro, integração versus autarquia.

O resultado foi uma admirável síntese dinâmica do pensamento contemporâneo que logrou obter a adesão dos Estados Unidos e da China, do Reino Unido e da Índia, da União Européia e dos africanos, do Japão e do Camboja e Vietnã. Tendo recusado formular 12 novos imperativos para tomar o lugar dos de Washington, a conferência escapou de merecer sarcasmo similar ao comentário de Clemenceau sobre os “14 Pontos” do presidente Wilson: “Se até o bom Deus se contentou com dez, por que precisaríamos de 14?”.

De fato, para que precisaríamos melhorar os Dez Mandamentos? Ou, se preferirem o budismo, para que necessitamos melhorar as oito etapas que conduzem ao Nobre Caminho do meio?

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 27/02/2000.