Com certo espanto confessa o teólogo protestante Harvey Cox ter descoberto que o vocabulário dos jornais de negócio é estranhamente similar ao dos livros de teologia. O professor de “Divinity” da Harvard narra sua experiência no “Atlantic Monthly”. Decidido a compreender melhor o mundo real da economia, mas temeroso de bater com o nariz em linguagem rebarbativa, deu-se logo conta de que o “The Wall Street Journal” não tinha segredos para quem domina os meandros do livro do Gênesis ou da “Cidade de Deus”, de santo Agostinho.
Em todos eles encontra-se uma grande narrativa sobre o sentido último da história humana, sobre como as coisas deram errado e o que fazer para consertá-las. Os teólogos chamam isso dos mitos da origem, a história da queda e as doutrinas do pecado e da redenção. Os analistas financeiros preferem falar da intervenção estatal como o pecado original, a redenção sendo alcançada por meio do mercado livre, desde que não haja o mínimo desvio da ortodoxia _variante da crença de que, “fora da verdadeira igreja, não há salvação”.
No ápice de qualquer sistema teológico está naturalmente a doutrina de Deus. Na nova teologia, o pináculo celestial é ocupado pelo Mercado, com maiúscula para significar o mistério que o envolve e a reverência que inspira. O cristianismo afirma que Deus é onipotente, onisciente e onipresente. Da mesma forma o Mercado possuiria esses atributos, nem sempre evidentes, mas que devem ser afirmados na base da fé.
Observa Cox existir hoje tendência chamada de “teologia de processo”, segundo a qual Deus deseja ser dotado dos atributos clássicos, ainda não os possui em plenitude, mas está a se mover nessa direção. O que resolveria comodamente o embaraçoso problema de explicar como um deus que tudo pode e tudo sabe tolera tanto desconserto no mundo. É essa “perfeição em processo” que explicaria a frequência de crises apocalípticas, mesmo agora que a liberdade de capitais substituiu por toda a parte a feia heresia dos controles governamentais.
Divina onipotência é a capacidade de criar algo do nada e de converter em nada alguma coisa. No caso em tela, como na transubstanciação, o Mercado é capaz de transformar em mercadoria tudo o que seja mais sagrado: a natureza, as espécies biológicas ameaçadas, o corpo humano, seu sangue, seus órgãos, os genes, o princípio mesmo da vida _tudo está à venda.
É verdade que a própria religião não se furtou, no passado, a vender graças espirituais. Um certo Johann Tetzel, no zelo de promover o leilão de indulgências, chegou a inventar um dos primeiros “jingles”: “Quando a moeda cai dentro do prato do ofertório, uma alma sã pula fora do purgatório…”. Foi demais, e um monge chamado Lutero resolveu dar um basta.
Quanto à onisciência, asseveram-nos que, assim como o deus de outrora, o Mercado conhece nossas necessidades melhor do que nós mesmos. Se muitas vezes ele parece deixar-se levar de roldão pelo estouro da boiada, é que seus desígnios são impenetráveis e ocultos aos mortais. Um dia haveremos de entender que, do mesmo modo que no conto de Tolstói, “Deus vê a verdade, mas espera”. Antigamente, para conhecer o que os deuses imortais preparavam para o futuro, os homens os consultavam no oráculo de Delfos, em que os vaticínios eram formulados no estilo sibilino do presidente do Fed, Alan Greenspan. Ou então iam ao encontro dos profetas de Israel no deserto para ouvir a última jeremiada. Hoje basta ler ou escutar o analista de Bolsa de plantão a fim de saber, a cada dia, que o Mercado está “apreensivo” ou “confiante”, “pessimista” ou “eufórico”, ou, pior, “nervoso”, “imprevisível”.
Ai daqueles, investidores ou países, que ousam desafiar esses caprichos de humor! Serão severamente castigados, pois, diferentemente do deus dos cristãos, rico em misericórdia, o Mercado jubila quando aumenta o desemprego e milhares são postos na rua em decorrência de fusões. Como Baal ou os deuses astecas, o Mercado se alimenta de carne humana fresca e palpitante, quanto mais jovem, melhor!
E quem há de duvidar de que o Mercado nos espreita de todo lado, no momento em que, sob o pretexto de aumentar a racionalidade, recomenda-se submeter ao “mercado total” tudo, desde a administração das prisões até as relações familiares?
O autor teme haver incompatibilidade irreconciliável entre a nova fé e as demais em matéria de questões fundamentais como o valor da vida humana, a justiça, a natureza da comunidade, o sentido da vida. Nesse ponto, Cox confessa não ser ecumênico e preferir o confronto crítico. Onde não vê conciliação possível é no ensinamento de todas as religiões de que o ser humano é criatura finita, existindo limites a qualquer empreendimento terreno.
Um mestre japonês do Zen teria dito ao morrer: “Aprendi apenas uma coisa nesta vida: quanto é o bastante”. Ora, o primeiro mandamento do Mercado seria: “O bastante nunca basta”. O mercado que parar de crescer morre. Se isso acontecer, Nietzsche, afinal de contas, terá tido razão ao prever a morte de Deus. Apenas terá se enganado no deus que tinha em mente.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 22/10/2000.