Não é, como pode parecer, o título de romance policial. Na verdade, é o nome (ou quase) do longo poema que Charles Péguy dedicou à esperança, a segunda das virtudes teologais (“Le Porche du Mystère de la Deuxième Vertu”).
Péguy teria pouco tempo para realizar suas esperanças, ao menos as terrenas, pois foi dos primeiros oficiais franceses a tombar na Primeira Guerra, logo que começaram a troar os canhões de agosto de 1914.
O poema começa assim: “A fé que eu mais amo, diz Deus, é a esperança”. E prossegue (…) Pois, a fim de não me ver, seria preciso que essa pobre gente fosse cega (…). A caridade não me surpreende. Essa pobre gente é tão infeliz, a não ser que seu coração fosse de pedra, como poderiam deixar de ter caridade uns para com os outros? Mas a esperança, diz Deus, eis o que espanta a mim mesmo (…) Que essas pobres crianças vejam como tudo se passa e creiam que amanhã será melhor”.
Não sei se é certo, como Péguy afirma, que a esperança é a mais difícil, talvez a única difícil das virtudes teologais e sem dúvida a mais agradável a Deus. O apóstolo Paulo, que de virtudes entendia alguma coisa, asseverava que um dia a fé e a esperança passarão, mas a caridade há de ficar, pois ela é amor e o amor é a essência de Deus.
Admitamos, contudo, com o poeta, que a menininha Esperança conduz pela mão as Virtudes e os Mundos, “pois a Fé não vê senão o que é, e ela, ela vê o que será. A Caridade não ama senão o que é. E ela, ela ama o que será”. Aí está definido em que consiste a esperança.
No início dos “Ensaios”, Montaigne observa que nós nunca estamos dentro de nós mesmos, mas sempre além. Nosso pensamento está no que vamos fazer amanhã, no fim-de-semana, nas férias, após a aposentadoria. Vivemos, em suma, não só no futuro, mas de futuro.
Quando se arranca de alguém o futuro, já não há mais razão para seguir vivendo. É por isso que suicídio e desespero são sinônimos: se não há motivo para acreditar que amanhã será melhor que hoje, por que esperar?
Escrevi na semana passada que precisamos formular Cadernos de Esperança (não apenas de queixas). Devemos propor ao século que acaba razões válidas para crer no que começa. Não sonhos, vagas aspirações, intenções piedosas, mas motivos concretos, objetivos, para esperar.
Lembrei algumas dessas razões tangíveis: a revolução na situação da mulher, nas relações interpessoais e conosco mesmo, com o meio ambiente, o avanço em democracia, direitos humanos, o diálogo entre culturas e religiões. Não disse nada sobre a economia e a globalização porque aqui me sinto em terreno menos firme.
Terminamos o século e o milênio sem solução, mesmo em perspectiva, para dois flagelos: o desemprego em massa e a acentuação da desigualdade no interior das nações e entre elas.
Os liberais, velhos ou novos, falam no “nível natural de desemprego”. Todos parecem, com conformismo, se resignar com o aumento das disparidades como consequência inevitável da economia intensiva em conhecimento.
Ora, dizer às pessoas que muitas delas são provavelmente “inempregáveis”, que só os mais duros e competentes sobreviverão, que o admirável mundo novo da globalização será caracterizado pela insegurança do emprego e a instabilidade geral não é decididamente a melhor maneira de criar confiança no futuro.
É a mediocridade ou a covardia dos líderes diante da tirania da usura e dos mercados que está na raiz dessa capitulação diante do “gosto da cobiça e da rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza”.
O primeiro dever do estadista é gerar esperança, mostrar, não com demagogia, mas com racionalidade porque e como as coisas vão melhorar. O povo não esquece, mesmo decorridas décadas, os que lhe souberam acender no coração a trêmula chama da esperança. Que outra explicação haveria para o persistente fascínio que exercem Perón e Evita, na Argentina, e Getúlio, no Brasil, líderes que tentaram integrar os trabalhadores urbanos na sociedade, ou Juscelino, que a todos contagiou com a fé na capacidade de construir o futuro? Quem se lembra dos nomes dos outros, dos que atraiçoaram a esperança?
Alguns dos promotores da esperança tiveram tempo para avançar sua obra, como o presidente Franklin Roosevelt, que restituiu ao povo americano o otimismo e a confiança em si mesmo. Outros passaram como o raio que ilumina as trevas e nos faz ver o caminho.
Foi o caso do papa João 23, que só teve tempo de abrir o Concílio Ecumênico, de escancarar as janelas para inundar a igreja de luz e ar fresco. Ou de Martin Luther King, com sua visão de fraternidade racial, de Mahatma Gandhi, com a mensagem intransigente da não-violência, o presidente Mandela, fragilizado por 27 anos de prisão e ao qual só restou a energia para ensinar a sua gente a estrada da reconciliação e do arco-íris.
O presidente Vaclav Havel, que se debate hoje contra a morte, pertence também a essa família espiritual. Meses atrás, ao destituir o primeiro-ministro, disse que o erro do ministro tinha sido confundir a política com a macroeconomia e resumir a primeira à segunda.
Esquecera que o povo não é apenas o “homo economicus” multiplicado por milhões, mas o conjunto integrado dos cidadãos, de pessoas que agem não só por motivos econômicos, mas por valores e aspirações, paixões e emoções, por esperança e temor.
É essa a essência da liderança, a capacidade de fazer partilhar uma visão mais alta e nobre da vida coletiva, o poder de contagiar os outros com o entusiasmo capaz de liberar a energia e criatividade adormecidas nas almas, de mobilizar a força popular a fim de promover as únicas mudanças duradouras pois que nascidas de baixo para cima e não impostas do alto. Em outras palavras, a essência da liderança é moral; ela deve ter raízes plantadas no solo firme da razão, mas isso não basta, é preciso que ela cresça, estenda os ramos para o alto e crie folhagem capaz de abrigar a todos.
Esse foi o exemplo que nos deixou Betinho. Sua passagem foi fugaz, nunca teve ou quis poder, ao menos o poder-dominação. Num momento desmobilizador da vida nacional, preferiu a ação direta, mobilizadora, o esforço paciente de organizar o povo e fazer dele verdadeiramente um povo consciente de cidadãos.
Ninguém talvez como ele teria tanto motivo para desesperar, para tombar os braços e deixar-se ir, pois sabia que ia morrer, que não tinha futuro.
Mas até o fim não se entregou e concentrou o pouco de força que lhe sobrava no essencial: melhorar agora, aqui, sem adiamento, a vida dos pobres e vulneráveis a fim de dar-lhes razão para esperar no futuro.
“Esperança, infância no coração”, poderia resumir a vida que se apagou há um ano. Gosto de imaginar com Péguy, inspirador da nossa juventude nos anos 50, que se aplicou a Betinho o que escreveu o poeta:
“Ele pensa com ternura no tempo em que não se terá mais necessidade dele. E tudo seguirá o mesmo. Porque haverá outros. Que levarão a mesma carga (…) Quando tudo continuará a andar. E não andará pior. Ao contrário. Porque seus filhos estarão lá (…) Seus filhos farão seguramente melhor que ele. E o mundo marchará melhor. Ele não tem ciúmes. Ao contrário. Nem de ter vindo ao mundo num tempo ingrato. E de ter sem dúvida preparado a seus filhos um tempo menos ingrato. Que insensato teria ciúmes de seus filhos e dos filhos de seus filhos?”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 15/08/1998.