O título do artigo de hoje não é, prezado leitor, uma contribuição a mais à literatura do ufanismo. Infelizmente, o mundo nos imita não no que temos de melhor, seja lá o que for, mas no que presumivelmente constitui a pior de nossas características, a desigualdade.

É o que se impõe de modo irrefutável após a publicação do mais completo e recente estudo dedicado ao assunto pelo economista do Banco Mundial, Branko Milanovic, aparecido em janeiro do corrente ano em “The Economic Journal”, da “Royal Economic Society” do Reino Unido. Antes disso, o tema havia sido um tanto obscurecido por polemistas que, no afã de provar que vivíamos no melhor dos mundos possíveis, tinham recorrido a medições baseadas em amostragens parciais e insuficientemente representativas da totalidade.

A questão não é tão simples como pode parecer, pois existem, de saída, três tipos distintos de desigualdade. A primeira é a desigualdade no interior de cada país, geralmente a que se tem em mente quando se discute se a distribuição de renda melhorou ou piorou no Brasil ou nos Estados Unidos. A segunda é a desigualdade internacional, literalmente entre as nações, como diz a palavra, isto é, as diferenças entre as médias da renda per capita ou do PIB de um país para outro. Já aqui se introduz uma simplificação que distorce a realidade, uma vez que se supõe que todos os brasileiros e todos os americanos recebem a mesma renda. A terceira é a desigualdade global, que combina os dois outros conceitos e procura avaliar as diferenças de renda entre os indivíduos no mundo.

Mesmo então continua o problema da escolha da medida. Tradicionalmente, mediam-se as diferenças em termos de dólares, convertendo-se as rendas de pessoas ou países em dólares pela taxa de câmbio. É um método que também se presta a distorções, como se vê no caso da Argentina. Em razão da recente desvalorização, de um dia ao outro os argentinos passaram do primeiro ao sexto lugar na América Latina em matéria de renda per capita, atrás até do Brasil, o que é obviamente um exagero. O sistema melhor é o do “poder paritário de compra” ou PPP em inglês, pelo qual se calcula a quantidade de mercadorias e serviços que cada moeda pode comprar dentro do seu território.

Levando em conta tais distinções, o estudo de Milanovic é, como diz o autor, “o primeiro cálculo da desigualdade global da renda e dos gastos baseado exclusivamente em pesquisas efetuadas entre as famílias e cobrindo cerca de 84% da população mundial e 93% do PIB”. Vejamos algumas das conclusões:
1) A desigualdade global é extremamente elevada. Como se sabe, a medida mais usada para a desigualdade é o coeficiente Gini, segundo o qual 0 significa a igualdade perfeita e 100 a situação hipotética em que uma só pessoa monopolizaria a totalidade da renda. De acordo com o cálculo pelo critério do poder paritário de compra, a desigualdade global é de 66, saltando quase a 80 pela medição em dólares correntes.

2) A desigualdade global aumentou de 62,8 em 1988 a 66 em 1993, isto é, cresceu em média 0,6 ponto por ano. Trata-se de expansão muito rápida, superior até à que conheceram os EUA e o Reino Unido na década de 80, os anos Reagan e Thatcher, que assinalaram o maior agravamento das disparidades nesses países.

3) O aumento da desigualdade entre 1988 e 1993 foi, ao mesmo tempo, o resultado da ampliação das disparidades _seja no interior dos países, seja em nível internacional. Essas últimas, entretanto, isto é, as diferenças entre nações ricas e pobres, é que explicam a maior parte da agravação do fenômeno (entre 75% e 88% da desigualdade global).

4) Os 5% da população mundial que se encontram no fundo do poço tornaram-se mais pobres ainda, pois viram sua renda baixar em um quarto (25%) em termos reais, entre 1988 e 1993, enquanto os 5% mais ricos ganharam 12%.
5) A pequena parcela de 1% dos mais ricos no mundo recebe tanto quanto os 57% mais pobres; em outros termos, menos de 50 milhões de ricos açambarcam tanto quanto 2,7 bilhões de pobres!

Eu poderia, se quisesse, continuar a alinhar outras comparações acabrunhadoras, tais como o abismo que hoje separa a renda média da África da dos países industrializados, em relação aos quais os africanos representam apenas 7% dos rendimentos. Ou o caso da América Latina, onde, no fim dos anos 70, a renda média por habitante era de mais de um terço da dos países ricos, ao passo que agora ela mal chega a um quarto. Outro aspecto inquietante é a polarização entre poucos abastados, de um lado, e a crescente multidão de pobres, no extremo oposto, com a gradual diminuição dos países intermediários no meio. Essas nações, de renda correspondente entre 40% e 80% da média das mais avançadas, constituíam uma espécie de classe média de países e, tal como ocorre com as classes intermediárias no interior de muitas sociedades, são menos numerosas em nossos dias do que eram na década de 70.

Não disponho infelizmente de espaço para tentar indagar as razões complexas que explicariam uma tendência que até o momento vem contrariando todas as promessas extravagantes feitas em nome do processo de globalização e liberalização da economia. Esse processo era suposto produzir uma aceleração do crescimento econômico e a progressiva convergência, quer dizer, o estreitamento das diferenças entre as economias menos e mais desenvolvidas.

O que tivemos na realidade, na década de 90, foi um crescimento anêmico, o menor do período após a Segunda Guerra, entrecortado de crises cada vez mais frequentes e acompanhado do agravamento das desigualdades no interior dos países e entre eles. Pode ser que se trate de tendência temporária, a ser oportunamente sucedida por resultados mais satisfatórios no futuro. Para isso, é preciso, no entanto, abandonar a atitude dogmática de considerar o atual sistema como o mais racional e intocável de todos, aceitando com humildade o imperativo de corrigir suas deficiências, a maior das quais se refere ao aumento da desigualdade. É bom fazer isso enquanto é tempo, pois, como dizia Emmanuel Mounier já em 1950: “Por mais racional que seja uma estrutura econômica, se se baseia no desprezo das exigências fundamentais da pessoa, leva dentro de si sua própria condenação”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 31/03/2002.