Anos atrás, eu estava em Buenos Aires no domingo em que Alfonsín ganhou as primeiras eleições presidenciais após o período do regime militar. Passei horas caminhando pelas ruas, maravilhado pela explosão de alegria e entusiasmo após anos de atrocidades sem paralelo na história argentina.
Compreendi, então, como é difícil ou mesmo impossível destruir a alma de um povo. Há golpes terríveis do destino que às vezes aniquilam um indivíduo, privando-o para sempre da vontade de viver.
Os povos, contudo, possuem essa capacidade inesgotável de renascer de mil mortes, de se reerguer de queda após queda de um doloroso calvário.
Foi o que tive o privilégio de ver no sábado passado, aqui em Pretória, onde escrevo. Inaugurávamos, nesse dia, a 9ª Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad).
O presidente Nelson Mandela quis, porém, que participássemos todos, o secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, o rei da Jordânia, os vários presidentes convidados, das celebrações do chamado Dia da Liberdade da África do Sul.
Nesse dia, há dois anos, eleições democráticas e pacíficas permitiram que se realizasse algo nunca antes visto na história da opressão: a passagem sem sangue, sem violência, de um regime minoritário, cruel, tirânico, de meio século de duração, para um governo de maioria africana, pobre e espoliada.
Essas poucas horas que vivi em Pretória ao lado do presidente Mandela se inscreverão entre as experiências mais marcantes e inesquecíveis de minha vida. Nada de desfile militar, de exibição orgulhosa de blindados e canhões. Só o povo ocupava as ruas e as praças. Mas que povo maravilhoso e espontâneo!
A festa se compunha de 10% de organização e o resto era de alegria, cantos, danças, grupos tribais com tecidos e adornos de cores explosivas. E, acima de tudo, permeando a festa toda, um sentimento de fraternidade, união, paz e reconciliação.
Nenhuma sombra de ressentimento, nenhuma amargura nessa encarnação da dignidade e da grandeza que é o presidente Mandela. Vinte e sete anos de prisão e isolamento não lhe quebraram o espírito. Mas tampouco lhe deixaram algum desejo de vingança.
Essa generosidade de alma e essa capacidade ilimitada de perdoar contagiaram a população inteira. Como parecem absurdas hoje as previsões que antecipavam para este país os horrores de uma desforra racial sangrenta!
Mas, para dar base sólida ao perdão, os sul-africanos tiveram mais coragem e sabedoria do que nós. Criaram, sob a presidência do arcebispo Desmond Tutu, a Comissão da Verdade e da Reconciliação, “a fim de fazer a paz com o passado, investigando, registrando e divulgando a verdade sobre as violações de direitos humanos”.
O lema da comissão é: “Compreensão, não vingança; reparação, não retaliação”.
Logo após a festa, almocei e conversei longamente com o ex-presidente Frederik De Klerk, o artífice de toda essa mudança. Homem inteligente e bem informado, nele também não percebi vislumbre algum de arrependimento ou frustração.
Um dos líderes negros presentes disse, com razão, que De Klerk passará à história como primeiro chefe de governo de dominação racista conscientemente capaz de pôr em marcha um processo que, de maneira inevitável, o alijaria do poder.
Duas reflexões me vieram constantemente ao espírito nessas horas.
A primeira foi sobre o prazer, a excitação de viver este momento privilegiado da história em que Deus suscita homens que nos consolam dos Hitlers e Stálins, seres que nos provam existir também em nós uma capacidade infinita de renovar o milagre do amor.
Meu segundo pensamento era sobre a semelhança com o Brasil: os mesmos contrastes brutais entre bairros residenciais cinematográficos e favelas gigantescas e monstruosas, a criminalidade originada de um desemprego de 40%, o idêntico desafio de integrar duas nações, uma próspera, outra miserável.
Não temos, é certo, a complexidade, o antagonismo de raças, 11 línguas diferentes! Mas será que temos a qualidade moral dessa liderança?
Faço votos para que, também nesse domínio da inspiração e do exemplo, Bernardo Pereira de Vasconcelos tenha sido profético quando disse no Senado do Império: “A África civiliza a América”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/05/96.