Mariano Picón Salas, grande historiador venezuelano que foi embaixador no Brasil, contrastava em um de seus ensaios o destino ameno dos heróis da independência da América do Norte com a sorte madrasta dos próceres latino-americanos. Após escrever a Declaração da Independência e governar seu país, Jefferson terá tempo ainda de desenhar a sede da Universidade da Virgínia, enquanto Washington se extingue serenamente na paz bucólica de sua propriedade de Mount Vernon, como um daqueles austeros varões romanos tão admirados em seu tempo. Já os precursores e autores da independência hispano-americana morrerão em calabouços sinistros como Francisco Miranda, serão executados como Morelos, assassinados como Sucre, exilados como San Martin e O’Higgins ou, como Bolívar, se consumirão de fadigas e desgostos antes dos 50.
Serão todos esmagados pelo “peso da noite” de que falou outro hispano-americano, daquela “noite escura da alma” em que germinam angústia e desespero.
Haverá talvez na sina ingrata dos líderes o efeito do contágio do sofrimento dos miseráveis, uma espécie de comunhão dos fracassados, o contrário da comunhão dos santos.
Quase 200 anos depois da independência, a política na América Latina continua frequentemente a culminar em tragédia, como atestam os incontáveis torturados, martirizados, desaparecidos dos regimes ditatoriais que infelicitaram a região até ontem.
Nem houve grande melhora na situação que está subjacente à crueldade do destino dos reformadores e que em boa medida a explica e condiciona. No recém-publicado Panorama Social da América Latina, por exemplo, a Cepal constata que o número de pobres e indigentes no continente é de 209 milhões e que a taxa de pobreza durante a primeira metade dos 90 declinou apenas ligeiramente de 41% para 39%. Mesmo essa baixa não chega a ser um progresso, pois não foi capaz de compensar a deterioração ocorrida nos 80, quando o índice saltou de 35% para 41%.
Pior é a situação no que se refere à indigência ou pobreza absoluta, reduzida apenas de 18% para 17%, ainda dois pontos percentuais acima do nível de 1980. Como diz o relatório: “Na América Latina, uma em cada seis famílias não consegue satisfazer suas necessidades básicas de alimentação, mesmo que gaste toda sua renda em alimentos”.
Não obstante todos os esforços e sacrifícios, não logramos sequer reparar o estrago produzido pela “década perdida”, a partir da crise da dívida. Corremos não para ficar parados: corremos para trás, fizemos um gol contra.
Na raiz desse desastre, se encontra o medíocre resultado das políticas econômicas de ajuste, ao menos até agora. Entre 1990 e 1996, a média do crescimento não passou de 3%, inferior em muito ao desempenho histórico regional de 1945 a 1980, que havia sido de 5,5% ao ano e muito longe dos 6% que a Cepal considera o mínimo necessário para superar os atrasos sociais e tecnológicos.
Como se vê, apesar de todas a crítica que se faz à orientação do desenvolvimento latino-americano de antes da crise, os novos paradigmas se mostraram incapazes de passar no único teste que realmente conta: o do desempenho na prática, não na promessa.
Uma das consequências do crescimento-lesma é que o desemprego aberto atingiu 8%, da mesma forma que aumentaram o subemprego e o setor informal.
Outra observação inquietante do estudo da Cepal é que, no Brasil, 80% dos empregos criados de 1991 a 1996 não parecem caracterizar-se por maior grau de qualificação técnica e as remunerações são inferiores às que eram recebidas pelos empregos suprimidos. Em contraste, o grupo de ocupações com maior proporção de empregos perdidos é o dos profissionais e técnicos, o que justifica sérias preocupações sobre a qualidade de crescimento, que, além de pouco, é ruim.
O balanço líquido dessas cifras em termos de desintegração social, de violência, drogas e insegurança é assustador: na Colômbia, as taxas de homicídio triplicaram entre 1983 e 1992; no Peru, foram multiplicadas por cinco (1986-1991); no Panamá, dobraram em três anos (1988-1990).
Entre nós, todos sabemos que o panorama não é muito diferente. A conclusão é inescapável: em dois séculos de vida independente, a meta de integrar a população em um todo de relativa homogeneidade, de convergir rumo a níveis satisfatórios de equalização de oportunidades, em suma, de construir a cidadania, resta quase tão distante como sempre esteve.
Assim, no limiar de um novo século de nossa história, seria trágico se não se dessem ouvidos à advertência que nos faz Celso Furtado na extraordinária síntese histórico-estrutural do desenvolvimento que apresentou, na segunda-feira passada, no seminário sobre modelos e políticas de desenvolvimento realizado no Rio de Janeiro.
Após o desaparecimento de Alceu de Amoroso Lima, Celso é, com Antonio Candido, um dos poucos verdadeiros sábios que nos restam, aqueles homens que, tendo vencido o peso da noite e sobrevivido a décadas de adversidade, podem ministrar ao resto da tribo lições de sabedoria e de vida. Ele o faz ademais com a concisão, a secura do sertanejo do Pombal da Paraíba, alimento magro e musculoso, sem perigo de gordura, “faca só lâmina”.
Em seu texto, Celso adverte que, “se não conseguirem deter o processo de concentração de renda e exclusão social, países como o Brasil e o México estarão expostos a tensões sociais que poderão conduzi-los à ingovernabilidade”. E conclui sobre a globalização: “Os novos desafios, portanto, são de caráter social, e não basicamente econômico, como ocorreu na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo. A imaginação política terá assim que passar ao primeiro plano. Equivoca-se quem imagina que já não existe espaço para a utopia. Diferentemente do que profetizou Marx, a administração das coisas será mais e mais substituída pelo governo criativo dos homens”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 27/06/1998.