”Os homens práticos que se acreditam isentos por completo de qualquer influência intelectual são habitualmente escravos de algum economista defunto”. Keynes, autor dessa frase, sabia do que falava. Muito após sua morte, suas teorias ainda dominavam a política econômica dos países ocidentais pelo menos até o início dos anos 70.
Richard Weaver, contemporâneo seu, iria dar outra expressão a essa verdade num livro de grande repercussão logo depois da Segunda Guerra Mundial e sugestivamente intitulado ”As idéias têm consequências”.
É por essa razão que se deve acompanhar o debate em curso nos EUA e na Europa sobre o impacto da economia atual na vida cotidiana das pessoas comuns. Não só a discussão obriga a enfrentar realidades inconfortáveis como a desigualdade, a insegurança do emprego, a ansiedade em aumento. Ela pode também constituir um dos primeiros indícios anunciadores de que a maré dominante, após atingir seu ponto mais alto no fim da década de 80, começa talvez a refluir.
Todos os livros ou trabalhos citados em meu artigo anterior tomam, de fato, como termo de referência para suas dúvidas ou contestações a teoria e a prática do paradigma pós-keynesiano, mais conhecido como neoliberalismo, no sentido europeu da expressão (nos EUA, como se sabe, liberal corresponde mais ou menos a ”democrata de esquerda”).
O triunfo dessa corrente é, aliás, prova contundente do poder das idéias. Os livros que lhe deram origem, ”O caminho da servidão” (1944), de Friedrich von Hayek, ”A sociedade aberta e seus inimigos” (1945), de Karl Popper e ”Capitalismo e liberdade” (1962), de Milton Friedman, apareceram num cenário que lhes era totalmente adverso. No mundo de então, o Estado desempenhava um papel central e crescente por toda a parte, quer sob a forma do totalitarismo soviético e seu controle absoluto sobre uma economia aparentemente imbatível, quer por meio das diversas modalidades de estado de bem-estar do Ocidente: o ”new deal” de Roosevelt, precursor da ”great society” de Johnson, o trabalhismo britânico vitorioso sobre Churchill, a social-democracia na Escandinávia e na Europa continental, com extenso programa de nacionalização da economia e poderosos partidos comunistas.
Diante do Estado, os neoliberais afirmaram o mercado, a sociedade civil. Contra a estatização e a regulamentação, pregaram as privatizações e a desregulamentação. Em lugar do Estado providencial e assistencial, deram ênfase à auto-suficiência e à responsabilidade individual.
De um grupo minoritário nos após-guerra, o neoliberalismo vai-se transformar na corrente hegemônica, sobretudo ao conquistar o poder em dois dos maiores países ocidentais com Thatcher e Reagan, embora sem a pureza e a coerência dos doutrinários. É claro que não foi só a força das idéias que lhe deu a vitória. Para isso valeu muito a pressão das mudanças históricas.
Nos anos 20 e 30, quando se tratava de salvar o capitalismo do colapso dos mercados provocados pela hiperinflação e a grande depressão; logo após a guerra, quando o problema era reconstruir economias devastadas, o papel central do Estado se impunha como evidência e as circunstâncias criavam um clima no qual o keynesianismo intervencionista florescia com naturalidade. O próprio êxito do Estado, contudo, levou a abusar do remédio, gerando o salutar movimento pendular do neoliberalismo no sentido contrário.
Esse reequilíbrio está longe de se ter completado, especialmente na área mais intratável por afetar mais de perto as pessoas comuns, que é a previdência social. Já se começam, porém, a perceber, aqui e ali, reações a desvios e excessos seja das privatizações, seja da desregulamentação ou outros aspectos da pregação neoliberal.
Não é coincidência que a maioria dos escritos de contestação à tendência dominante tenha origem nos EUA, país onde o neoliberalismo teve mais êxito em mudar a herança anterior.
É significativo, assim, que a primeira dessas obras se concentre no tema crucial do debate: os papéis respectivos do Estado e do mercado. ”Everything for Sale”, de Robert Kuttner, traz como subtítulo ”As virtudes e limites dos mercados”, o que é um tanto enganador, pois a análise dedica muito maior atenção aos defeitos do que às qualidades do mercado.
Nesse sentido, sem dizer nada de espetacularmente novo, o livro lembra com razão uma verdade obscurecida pela ideologia, a de que não está na natureza ou no poder dos mercados promover valores sociais indispensáveis, mas de nenhum potencial de lucro. A pesquisa científica pura, a infra-estrutura física, a moldura legal e institucional necessária à estabilidade macroeconômica, a correção dos desequilíbrios regionais ou sociais, a educação superior são exemplos óbvios. Mas, além de não servir para resolver esses problemas básicos, o mercado contribui continuamente para gerar novos problemas que é incapaz de solucionar. Da poluição atmosférica à destruição de rios e florestas, do colapso da Bolsa de Nova York em 1929 ao de Tóquio recentemente, da falência das entidades americanas de poupança e empréstimos aos desastres bancários em inúmeros países, da crise mexicana de 1982 à crise mexicana de 1994, há uma longa série de experiências nas quais o mercado se apropriou individualmente dos benefícios, deixando ao Estado e, portanto, aos contribuintes, o prejuízo de recolher os escombros e pagar coletivamente pela reconstrução. Se o poder das idéias dos grandes autores neoliberais nos ajudou a evitar o caminho da servidão e da adoração do Estado, é preciso agora recorrer à mesma lucidez intelectual para denunciar o perigo oposto, descrito por João Paulo 2º como a ”idolatria do mercado”. A lição é clara em ambos os casos: o Estado e o mercado existem para servir ao homem e não o contrário.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 22/02/97.