Com esse título, estou lançando na próxima terça-feira, 1º de setembro, livro que recolhe algumas das conversas que venho há três anos entretendo com os leitores da Folha a respeito da crise da vida contemporânea.

Por ironia do destino, o lançamento veio a coincidir com a evolução que parece perto de tornar o título realidade. O recrudescimento da crise asiática e japonesa, seu alastramento à Rússia e agora às Bolsas dos Estados Unidos e da Europa fazem pensar que um dos aspectos do problema maior, a crise econômica mundial, está talvez começando a ficar no ponto.

Como no caso da calda do doce, esse ponto ideal é aquele instante fugaz, quase imperceptível, que separa o fracasso do êxito. Em física, por exemplo, o ponto crítico é o momento exato, abaixo ou acima do qual certas mudanças não são possíveis.

Mas não será contradição acasalar palavras de conotação tão distinta como “crise” e “ótimo”? É justificável adicionar mais esse paradoxo a outros como “boa morte”, “sofrimento redentor” ou, como ousa afirmar a liturgia do Sábado da Ressurreição, “feliz culpa”, que nos “mereceu tão grande Salvador”?

O que têm de comum essas expressões é que elas todas se esforçam por extrair algum bem do mal. Pode-se acaso fazer o mesmo com a crise, aparentemente tão associada ao desastre, à catástrofe?

Cada vez que se discutem questões fundamentais como essa, convém recorrer à etimologia, mergulhar no profundo mar imemorial da linguagem em busca da raiz da palavra. Não era à toa que os antigos hebreus acreditavam que o nome encerrava a essência da coisa e por isso se abstinham de em vão escrever ou invocar o nome próprio de Deus.

Ora, em grego, “krisis” era o nome da peneira e sugeria a idéia de separar, selecionar, escolher. Daí procede “crítica”, ato de julgar, de atribuir valor, de separar o joio do trigo. É nessa linha que se insere o uso do termo em medicina no qual crise é o momento decisivo da doença, quando ela toma a direção da cura ou do desenlace.

Compreende-se, assim, por que a crise é sinônimo de molestar, de perigo grave, de ansiedade e angústia. Mas ela esconde igualmente a semente da esperança, ao abrigar o empenho total das faculdades, a entrega absoluta do ser no decisivo esforço de superar as dificuldades.

Antonio Gramsci captou bem o conteúdo dialético da crise, a tensão inerente entre vida e morte, a natureza orgânica, biológica do conceito na sua conhecida definição como o interregno mórbido entre o velho, que não acaba de morrer, e o novo, que não consegue nascer.

É isso que me faz querer acreditar que nos acercamos da hora da verdade, o momento, no Brasil e no mundo, em que a iminência do desastre nos forçará a romper a inércia e agir antes de que a crise se transforme em tragédia. O ponto ótimo é justamente o que se atinge ao saber afinar o perigo, sintonizar a gravidade de modo tal que se catalisem as decisões penosas na undécima hora prévia à meia-noite, às trevas exteriores onde haverá choro e ranger de dentes.

Esforço-me em crer que estamos próximos da fase decisiva porque a crise deixou agora de ser o flagelo particular de tailandeses e coreanos, de indonésios e russos, para se converter em risco iminente para americanos e alemães, em desastre que já se está abatendo sobre os japoneses.

Pela primeira vez desde que a Tailândia desvalorizou a moeda, em julho de 97, as principais economias do mundo começam a sentir cheiro de enxofre. Até anteontem, norte-americanos e europeus se beneficiavam com a desgraça alheia pelo efeito combinado e perverso de três fatores: a queda brutal nos preços das matérias-primas, chegando a 30% no caso do petróleo; a importação de manufaturados asiáticos mais baratos; e o desaquecimento gradual da economia, sem necessidade de aumento dos juros nos EUA.

O quadro atual é, contudo, muito mais inquietante para as economias centrais, ameaçadas não só pela volatilidade irracional dos mercados enlouquecidos, feitiço que elas mesmo inventaram, mas também pela sombra perturbadora da deflação, isto é, a queda em cadeia do valor de ações, imóveis e preços em geral.

No momento, trata-se apenas de fantasma e como tal poderá ser facilmente dissipado pelo foco de políticas claras e determinadas.

Afinal de contas, as lições do colapso de 29 tornaram os países industrializados mais sofisticados no gerenciamento da complexidade financeira, como se viu, por exemplo, na contenção e reversão prontas e eficazes do susto da queda da Bolsa de Nova York em outubro de 87. Desta vez, porém, o desafio é o mais sério que se enfrenta desde o fim da Segunda Guerra, devido à intensidade, persistência e ao potencial de contágio universal.

A prioridade tem de ser hoje a recuperação da economia do Japão, fulcro da crise e correia de transmissão entre as agruras asiáticas e o Primeiro Mundo. Só a economia japonesa poderá efetivamente desempenhar na Ásia o papel duplo que tiveram os Estados Unidos na crise mexicana, de ser, ao mesmo tempo, a fonte de financiamento e o mercado capaz de absorver as exportações asiáticas.

Se essa é a prioridade a curto prazo, ela não basta, todavia, para remover o problema subjacente ao desencadeamento das crises mexicana e asiática: a volatilidade incandescente dos mercados financeiros imprudentemente liberalizados.

O ritmo da turbulência se acelerou de tal forma que uma crise financeira e monetária grave está ocorrendo a intervalos de 19 meses. Decididamente há algo de errado quando se chega ao ponto de viver quase em crise permanente, quando a instabilidade cambial perdura há mais de quarto de século, desde que Nixon abandonou, em 71, o sistema de Bretton Woods e deixou as moedas flutuarem. Existe sem dúvida um problema sistêmico, que não se resolve automaticamente como resultado da superação de crises individuais de países ou continentes.

Reconstruir o sistema abalado será mais difícil que ajudar alguns países a se pôr de pé. Não há, porém, alternativa se quisermos evitar o pior. Durante os 21 anos transcorridos entre 18 e 39, as crises e depressões ocuparam 42% do período. Viveu-se, portanto, quase um dia de crise em cada dois. Sabemos bem demais como tudo acabou e não é por coincidência que a mesma data marque o final de uma era de turbulência e o princípio da mais cruel e destrutiva das guerras. O ponto ótimo da crise está engrossando. Se passar do ponto, estraga.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 29/08/1998.