A leitura dos jornais europeus que se animaram a avançar algumas previsões para 1996 deixa um sentimento de decepção. As profecias são tímidas, hesitantes, do gênero “mais da mesma coisa”.

De acordo com os profetas de plantão, as economias industrializadas não crescerão muito, mas também não entrarão em recessão, o Japão reagirá finalmente, mas não o bastante, o México começará a sair de sua crise, mas muito lentamente, e assim por diante.

Há, de um lado, o receio, às vezes confessado, de não voltar a pecar por otimismo como há um ano. Do outro, existe uma espécie de fadiga em relação aos acontecimentos assombrosos, históricos, como a queda do Muro, o fim da URSS ou, mais modestamente, as greves francesas, fenômenos por natureza imprevisíveis. Afinal, era isso o que tinha em mente Chesterton quando dizia que a história só tinha uma lei: sempre acontece o que ninguém previu.

Assim, a fim de poupar-se a humilhação dos grandes desmentidos, prefere-se pensar pequeno, prever coisas medíocres, pois se arrisca a errar menos. Os fatos, porém, não mentem e os primeiros deste ano apontam de novo para a raiz do mal-estar deste fim de século: o temor diante de um mundo novo e ameaçador.

Mal se encerraram as festas de fim de ano, a manchete do ”Financial Times” de 3 de janeiro reatava com o tom sombrio dominante durante as greves de dezembro: “A AT&T vai cortar 40 mil empregos”, num processo de divisão em várias empresas estimulado pela desregulamentação das telecomunicações nos Estados Unidos.

Ao retomar a notícia, a televisão em Genebra lembra que, nos últimos anos, a GM eliminou 70 mil postos, a IBM 60 mil, a indústria americana 3 milhões, ajuntando, para tranquilizar, que o setor de serviços gerou número mais ou menos equivalente de lugares.

O problema, entretanto, não é saber se houve ou não compensação em outros setores, se os novos empregos são em tempo integral ou parcial, se os salários são iguais ou menores. Ainda que se dê resposta positiva a todas essas indagações, isso serve de fraco consolo para quem se viu ou teme ver-se posto na rua de uma hora para outra.

Acabo de ler um texto que, melhor do que qualquer outro, captou a complexidade e os contrastes de medo e esperança diante da globalização e da generalização da economia de mercado.

O texto começa por dizer que “aceitar e promover o papel central do mercado é aceitar a competição como dinâmica do progresso, mas sem ignorar seu potencial de esmagamento dos fracos e dos abandonados pelo caminho.”

Prossegue reconhecendo que “o Estado e as organizações internacionais têm uma missão essencial de vigilância e enquadramento, a fim de que a competição permaneça livre, mas se dobre às exigências da Justiça e ao respeito de todos os nossos valores essenciais, os quais não obedecem à lógica dos preços”. Afirma, então, que será preciso “garantir a reconciliação da livre competição e da solidariedade e, por meio dela, de tudo que exige o respeito de todo homem e do homem todo”.

A análise mostra que, apesar de suas promessas, “para muitos dos nossos contemporâneos, a globalização é, sobretudo, um universo que se constrói sem eles e do qual eles conhecem em especial os malefícios (…), um fenômeno que se aplica aos produtos, aos serviços, aos capitais, mas de maneira muito desigual aos homens.”

O perigo não se limita aos indivíduos. O risco de marginalização se estende a países, regiões inteiras, a África em particular. Nos ex-países socialistas, a transição “lembra os momentos mais cruéis do capitalismo selvagem de fins do século passado (…). Corrupções, violências se multiplicam”. Diante disso, indaga-se o analista: “Que vale essa globalização, se ela não passa de um meio para que os cínicos escapem a toda norma ética e à lei?”

Os leitores se surpreenderão ao saber que o autor dessas linhas de vigorosa denúncia não é um chefe religioso, muito menos um marxista oposto ao atual processo de unificação dos mercados.

Trata-se, em verdade, de Michel Camdessus, diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, falando no colóquio “Economia Para Qual Futuro?”, organizado pelo Instituto Internacional Jacques Maritain, em Roma, em 30 de novembro de 1995. Convidado ao colóquio, não pude comparecer porque estava no Brasil.

Numa reflexão rigorosa e sem concessões, fruto de uma espiritualidade profunda e vivida, Michel Camdessus se recusa à conclusão de desesperança que poderia encontrar justificativa no olhar lúcido com que disseca a patologia da globalização.

Prefere acreditar, com Teilhard de Chardin, “que é Deus mesmo quem atrai os homens e os atinge pelo processo unificador do universo”. Aceita fazer, com Pascal, uma aposta de que nesse processo se esconde um dos sinais dos tempos que podem concorrer para uma sociedade mais fraterna, se soubermos humanizá-lo.

“Os sinais dos tempos”, ensina numa fórmula lapidar, “jamais anunciam soluções-milagres aos problemas do mundo; eles são o convite a um esforço conduzido pela esperança”.

Tal esforço deve centrar-se em dois valores: a responsabilidade de cada país em realizar seu destino e aportar sua contribuição ao bem comum e a solidariedade para harmonizar as lógicas da competição e da cooperação.

No domínio da responsabilidade, o diretor do FMI exige, de início, rigor na gestão econômica; retidão, primeiro de parte dos grandes países industriais, em seguida das economias emergentes.

Uma segunda condição é a “busca de um crescimento de alta qualidade dirigido ao objetivo do desenvolvimento humano”. O terceiro requisito é a reforma do Estado, a fim de fazer o que o mercado não pode ou não quer _a tutela do bem público.

Também no que se refere à prática da solidariedade, destaca três setores onde se registram, atualmente, retrocessos que é necessário reverter para, depois, poder avançar novamente: a cooperação monetária, a ajuda ao desenvolvimento, a ajuda à transição.

A riqueza do texto o faz merecedor de um exame que deve ser prosseguido num próximo comentário.

A fim de encerrar esta primeira abordagem, basta evocar a conclusão, na qual Camdessus, mais uma vez, se diferencia da mediocridade e falta de inspiração que hoje dominam os governos e as instituições para afirmar, com Maritain, “que a democracia não pode dispensar o elemento profético e que o povo tem necessidade de profetas… A função profética deveria ser integrada à vida normal e regular do corpo político e emanar do próprio povo (…), a partir da atividade espontânea das pessoas nas suas comunidades locais mais elementares e mais humildes”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 06/01/96.