O Brasil seria a França da América Latina, de acordo com diplomatas americanos mencionados por colunista do “Herald Tribune”. A comparação não pretende ser elogiosa, acrescenta o jornalista, que a atribui à resistência à liberalização comercial assumida por brasileiros e franceses em seus respectivos continentes.

Passemos sob silêncio a tendência do colunista e seus compatriotas de tachar de adversário da liberalização comercial quem se opõe às propostas dos EUA. Como se esses não fossem iguais aos demais países no mercantilismo de excluir da abertura os setores nos quais não são competitivos: aço, suco de laranja, açúcar, tabaco, calçados.

O Brasil deveria a honra do paralelo às reticências que demonstra em relação à Alca. De fato, para quem de longe observa o debate entre nós, chama a atenção a quase unanimidade, se não na rejeição, ao menos na falta de entusiasmo, com que se encara o projeto americano. No máximo, há os resignados ao que lhes parece (erroneamente) inevitável, a não ser que os simpatizantes se escondam numa semiclandestinidade envergonhada.
O que estaria por trás desse fenômeno, tão contrastante com outros países latino-americanos? Embora haja quem fareje motivação ideológica, tenho a impressão de que as razões são mais complexas, a combinação talvez de dois motivos básicos.

Por um lado, sobrevive a obstinada crença no destino nacional, na possibilidade de projeto próprio de país (como na França), que data pelo menos da transformação modernista, a partir de 1922. Esse projeto é inseparável da aspiração por uma economia de base ampla e relativamente completa, abrangendo poderoso e diversificado setor industrial. Em contraste, muitos dos nossos vizinhos, conformados ao desmantelamento da indústria, reciclaram os sonhos, contentando-se em conquistar lugar ao sol como exportadores de alimentos ou minérios, uma espécie de Nova Zelândia latino-americana.

Por outro lado, pesa também o temor de acabar engolido, ao tentar ser sócio de igual para igual com potência da qual o Brasil está separado por incomensurável diferencial de poder. O temor nada tem de irrazoável ou de vexaminoso e deita raízes nas obscuras camadas do remoto passado colonial, como tenciono lembrar um dia desses.

Por não ser glorioso ou confortável, o sentimento não deixa de ter consistência real. É o que mostra Vivianne Ventura Dias, diretora da Divisão de Comércio da Cepal, numa das melhores análises sobre o tema. Seu artigo “A pressa e a perfeição na criação da Alca” (“Valor”, 12/02/01) atualiza em termos concretos os velhos argumentos contrários a pactos do cordeiro com o leão, com duas afirmações principais. A primeira é que a proposta da Alca tende muito mais a abrir os mercados latino-americanos às exportações dos EUA do que a melhorar substancialmente o acesso latino-americano ao mercado do Norte. A razão é simples: a média efetiva das tarifas aplicadas pelos EUA aos produtos importados da América Latina em 1999 foi de apenas 1,1% (para o Mercosul, de 2,4%). Muitas dessas importações se beneficiam do Sistema Generalizado de Preferências ou estão livres de encargos. Nos itens onerados por tarifas altas ou barreiras de outra índole como o antidumping (citados acima neste artigo), é pouco realista esperar mudanças, devido à força dos lobbies.

O segundo ponto é que, havendo entre os parceiros desigualdade acentuada de tarifas e estruturas de regulamentação, “os custos recaem desproporcionalmente sobre os países com tarifa elevada e marcos regulador e institucional deficientes, quando negociam com países que apresentam tarifas baixas e um marco regulador e institucional abrangente e eficaz”.

Trata-se de descrição perfeita do que já nos sucedeu na Rodada Uruguai e nos atribula agora a vida nas disputas com os EUA sobre medicamentos ou com o Canadá sobre os subsídios para a exportação de aviões, sem falar nos problemas latentes que ameaçam a indústria automobilística. Em todos esses casos, quem dispõe, como os países industrializados, de regulamentação minuciosa e completa acaba por impor essas normas a economias subdesenvolvidas que se acham longe do nível para poder adotá-las sem frustrar sua possibilidade de desenvolvimento futuro.

O perigo é que, hoje, as negociações, as da Alca e as da OMC em Genebra, se concentram cada vez mais nas normas tendentes a limitar nossa liberdade de escolher e aplicar políticas de desenvolvimento. O colunista do “Herald” nos lisonjeia o amor próprio, ao falar na “notável similaridade” entre os dois países porque ambos estariam em condições de exercer “influência decisiva” sobre o sistema comercial. A França provou efetivamente isso, na defesa firme de seus agricultores ao fim da Rodada Uruguai, cedendo pouco ou quase nada. Nós teremos de buscar inspiração no exemplo francês, não nesse episódio comercial, já que nos faltam os meios para que a analogia seja adequada. Não é o caso de invocarmos o espírito do almirante Villegagnon, fundador da França Antártica, a quem o embaixador Azambuja homenageou com placa comemorativa. Mais apropriado é meditar no extraordinário diálogo ente Churchill e De Gaulle em 10 de junho de 1942. Ao comentar as dificuldades de ambos com Roosevelt, o primeiro-ministro britânico aconselhou a transigência, dando seu exemplo: “Veja como ora eu me curvo, ora me levanto”. Ao que lhe respondeu de Gaulle: “Você pode fazê-lo, pois está sentado sobre um Estado sólido, uma nação determinada, um império unido, grandes exércitos. Mas eu! Onde estão meus meios? No entanto tenho a meu cargo os interesses e o destino da França. É pesado demais, e sou demasiado pobre para poder dobrar-me”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 23/03/2001.