Qual é o sentido das viagens que permitiram descobrir as rotas marítimas para a América, a Índia, o Brasil? Qual é o sentido da experiência humana que se esboça no Brasil com a descoberta? Qual é o sentido do vínculo entre essas duas experiências, a global e a nacional?
Sentido não significa aqui retomar as concepções para as quais existiria um sentido inerente, escondido na história por Deus ou pelo materialismo dialético. Ao contrário, é a nós, seres racionais, que cabe imprimir um sentido à história. Sociedade em marcha, a história necessita de uma direção, uma orientação, um mapa dos caminhos a seguir, ainda que só cheguemos ao destino após muitos desvios.
Na busca do primeiro sentido, inspiro-me no grande historiador inglês Charles Boxer. No prólogo de sua obra-mestra, “The Portuguese Seaborne Empire”, ele afirma que “a característica mais marcante da história (…) antes das viagens de descobrimento era a dispersão e o isolamento dos diferentes ramos da humanidade”. Na Europa só se tinha conhecimento vago e fragmentário das grandes civilizações da Ásia e da África do Norte e nada se conhecia das culturas das Américas e de grande parte da África e do Pacífico (a recíproca era também verdadeira). Foram os navegadores portugueses e espanhóis que, “para o bem ou para o mal, aproximaram e vincularam os ramos largamente separados da grande família humana (…) e, pela primeira vez, tornaram a humanidade consciente, embora de maneira obscura, de sua essencial unidade”.
A evolução desencadeada pelos descobrimentos percorreu caminho semeado de crimes e atrocidades: conquista sangrenta e colonização das Américas, genocídio de povos e de culturas, tráfico de 12 milhões de africanos, imperialismo na África e Ásia. Não obstante, o processo posto em marcha pelas descobertas rompeu, de uma vez por todas, a falta de contato e conhecimento entre civilizações e culturas. Esse processo culmina hoje com a globalização promovida pela revolução nas telecomunicações, cuja essência consiste precisamente em tornar mais fáceis e quase permanentes os contatos e as comunicações. Muito mais que a unificação dos mercados para o comércio e os investimentos, a verdadeira globalização deveria conduzir ao diálogo entre as civilizações como base para a cooperação fundada na mutualidade de interesses. Essa unidade sem uniformização é ou deveria ser o sentido do processo inaugurado pelos descobrimentos.
Nessa perspectiva, o Brasil foi um elo na cadeia de expansão da Europa e da imposição de seus padrões a boa parte do mundo, de início por meio do capitalismo mercantilista. Não é por acaso que o território da Santa Cruz acabe por adotar o nome de uma das mercadorias do comércio mercantilista, o pau-brasil. Desde então, a história do país jamais deixou de se identificar com as duas primeiras fases da globalização, a do mercantilismo e a da Revolução Industrial, da qual a independência latino-americana será um episódio.
Em todos esses séculos, o Brasil foi completamente integrado ao comércio mundial, pois exportava a quase totalidade de sua produção de açúcar, tabaco, ouro, diamantes, café. Essa perfeita inserção na globalização da época durou tanto tempo graças a sistema baseado na escravidão em escala maciça e no latifúndio. Em outras palavras, o processo perverso que, de um lado, integrava o Brasil à economia-mundo, do outro desintegrava-o interiormente, já que dividia a sociedade em mestres e escravos, sujeitos e objetos de direitos.
Os grandes intérpretes do Brasil a partir dos anos 30, Caio Prado, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Raymundo Faoro e precursores de gênio como Nabuco, voltaram-se para essas estruturas do passado a fim de nelas encontrar a chave do presente. A eles devemos as referências e os parâmetros obrigatórios para qualquer discussão ou balanço da experiência histórica brasileira: a influência persistente do tipo de colônia de exploração voltada para o mercado externo em contraste com a colônia de povoamento na América do Norte; o “caráter orgânico da escravidão” (de acordo com o indispensável artigo de Evaldo Cabral de Mello na Folha), isto é, a instituição em torno da qual tudo _economia, estrutura de classes, poder político, a cultura mesmo_ se definiu entre nós; a mestiçagem; o peso do patriarcalismo e do patrimonialismo; a integração de má qualidade com o mundo e a integração incompleta e frustrada com seu próprio povo. Essas referências são como camadas arqueológicas enterradas no subsolo da história brasileira, mas que continuam a desenhar e dar formas às elevações e depressões de sua topografia atual.
Delas retenho a da “Construção Interrompida”, de Celso Furtado, a integração não tanto inacabada, mas truncada, frustrada com sua própria gente, eco longínquo de Nabuco, quando dizia ser o Brasil nação sem povo, pois faltava fazer, de um conjunto de escravos, um povo de cidadãos. Faltava e em parte ainda falta. O sentido para o futuro que devemos extrair do nosso passado é completar a obra da Independência e da Abolição, isto é, integrar à sociedade brasileira os milhões de pobres, marginalizados, excluídos, sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, criar um povo de cidadãos prósperos com acesso à educação e à informação, atores plenos da economia de mercado como produtores, detentores de emprego e consumidores.
Essa, aliás, é a única maneira de tornar possível inserir o Brasil no mundo com integração de qualidade, e não apenas de quantidade, assegurando que, dessa vez, a integração internacional será reforço, não estorvo, à coesão interna.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 19/03/2000.