Não há mais sultão em Zanzibar. Descobri ao chegar que o último fugiu para Londres após a revolução de 1964 (a deles, não a nossa). Desde então, Zanzibar juntou-se à Tanzânia para formar a República Unida da Tanzânia.

Vim para cá com um punhado de gente da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, a Unctad, a fim de ajudar os 49 países mais pobres a definir o que desejam da próxima reunião de ministros da Organização Mundial do Comércio (OMC), em novembro.

Não é fácil, pois os pobres dentre os pobres respondem apenas por 0,4% das exportações globais, apesar de somarem 530 milhões de pessoas. A maioria deles está na África, que em 1950 representava pouco mais de 5% das exportações e das importações mundiais, porcentagens que desabaram em mais de dois terços, para pouco mais de 1,2% atualmente.

O mínimo que se pode dizer é que, se a globalização foi propícia a Cingapura e à China, mostrou-se madrasta com os africanos. Esses poderiam responder como um dos pais do sindicalismo americano, Samuel Gompers. Desafiado a declinar em poucas palavras o que afinal desejavam os sindicatos, Gompers limitou-se a um só: “More” (“Mais”).

É por isso que milhares de pessoas descem às ruas em Gênova ou Seattle para protestar contra a globalização, fenômeno que exacerba a competição, gerando combate tão acirrado como a vida ou mais, que os fortes exalta, mas tende a abater e esmagar os fracos, dentro dos países ou entre eles.

Nem sempre, porém, foi assim. Desde os tempos quase imemoriais de sumérios e assírios, Zanzibar ocupava papel central no sistema comercial do oceano Índico, devido à posição privilegiada de elo entre a África, a Índia e o Oriente Médio. Foi primeiro o comércio de marfim, especiarias e, particularmente, o cravo, o produto-símbolo dessas ilhas. Daqui partiu a arrancada final de Vasco da Gama rumo a Calicute _viagem que, juntamente à de Colombo para as Américas, viria a ser descrita por Adam Smith como constituindo “os dois maiores eventos da história da humanidade”. O teórico do capitalismo queria dizer que os descobrimentos inauguravam a longa era de expansão e domínio do Ocidente, da qual a globalização é o último episódio e as viagens de descoberta foram o primeiro.

Os portugueses controlaram Zanzibar por quase 200 anos, cedendo o lugar ao Sultanato de Omã, que fez do porto um dos centros do tráfico de escravos, até os primeiros anos do século 20. Não é de surpreender que tanta mistura de raça, cor, religião e cultura tenha criado um sabor inconfundível, mescla de vitalidade africana e do fervor espiritual muçulmano, com generosas pitadas de requinte hindu. É inesperado ver, por exemplo, as mulheres cobertas da cabeça aos pés, mas vestidas de “kangas” de panos laranja, abóbora, amarelo, vermelho, salpicando de cores quentes os desenhos emaranhados, o verde gordo e lustroso de vegetação que lembra a Zona da Mata de Pernambuco.

A pobreza é mais arrumadinha do que a nossa, talvez devido à presença em todo o lado de crianças asseadas em seus uniformes escolares azul e branco. Muito disso, da valorização da escola, sobretudo, deve-se a Julius Nyerere, um dos grandes heróis da independência da áfrica, mas que contrastava com a maioria dos outros líderes pela austeridade, modéstia, tolerância e desambição.

Seu desapego era tal que foi dos raríssimos chefes africanos a deixar o poder voluntariamente. Não teve êxito econômico com seu modelo de socialismo comunitário de aldeia. Em compensação, construiu sobre a base linguística do swahili uma nação unida, que, apesar de mais de cem tribos, conseguiu superar melhor que os outros a maldição do tribalismo. Quando quiseram lhe dar título altissonante de pai da pátria ou coisa do estilo, recusou e pediu que o chamasse de “Mwalimu”, quer dizer, o mestre-escola modesto de escolinha do interior que ele foi, convertendo-se no mestre de vida e sabedoria de seu povo.

Pude conhecê-lo razoavelmente bem em Genebra, aonde vinha com frequência presidir a “South Center”. Como tenho podido também conhecer mulheres e homens africanos de dignidade exemplar, de coragem estóica mas sempre iluminada pela alegria do riso espontâneo de quem continua a encontrar na vida, apesar de todas as suas misérias, ocasião interminável de diversão e deslumbramento. É um dos privilégios do meu trabalho fingir que ajudo os africanos quando são eles que me ajudam a crer que mesmo uma vida globalizada pode ser mais fraterna e transfigurada pelo amor e o afeto.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 29/07/2001.