Conflito _síntese das contradições da nossa história, a brutalidade injustificável que manchou as celebrações da descoberta teve o valor de ofuscar a festa com a realidade das profundas divisões da sociedade brasileira sobre a maneira de encarar as “raízes do Brasil”, isto é, o passado; os fins a atingir, quer dizer, o futuro e os meios para chegar até lá, ou melhor, o presente.
Desperdiçou-se a oportunidade de lançar um processo de reflexão crítica e reparação das injustiças, como o da “purificação da memória”, levada a efeito por João Paulo 2º. Antecipada por dezenas de ocasiões em que o papa reconheceu erros em casos específicos, essa última foi preparada não com espírito de quermesse, mas por meio de rigoroso exame de consciência da Comissão Teológica Internacional, culminando com cerimônia sóbria de pedido de perdão, marcada pela contrição e a humildade. Como no salmo em que se diz que, em lugar de celebrações, o que temos a oferecer a Deus, Senhor da história, é um coração contrito e um espírito arrependido.
O que não excluiria o justo regozijo pelo que deu certo, pelas inegáveis conquistas e realizações, que não faltam. A vida social se caracteriza pela tensão dialética entre cooperação e conflito, auto-satisfação e aguda frustração. A aparente contradição se manifesta na pesquisa publicada pela Folha na qual as pessoas se confessam orgulhosas de ser brasileiras por maioria de quase 90% e, ao mesmo tempo, dizem não estar contentes com a situação atual. Outro exemplo foi infelizmente o contraste entre a repressão aos índios e sem-terra _em outras palavras, os permanentes perdedores da história do Brasil_ e o esplendor da mostra inaugurada na Bienal sobre o redescobrimento do país no momento em que ele completa 500 anos.
É assim que se deveria ter comemorado o aniversário: mostrando o que se faz e o que falta fazer, dando o merecido destaque ao fruto acumulado, ao longo dos séculos, pelo esforço dos brasileiros, a começar pelos anônimos do povo, no seu “desejo de ter” uma arte, uma cultura. Edemar Cid Ferreira e seus companheiros, aos quais devemos essa magnífica realização, encarnam o que nos faz falta na política e na economia: os brasileiros que sabem fazer com que as coisas aconteçam, capazes de encontrar os meios idôneos para chegar aos fins necessários.
Ora, é justamente a falta de clareza sobre os fins e os meios que ressalta da sucessão de conflitos que formam a tessitura do cotidiano, o pano de fundo do Brasil ano 500. Esses problemas são os da falta de acesso à riqueza, à renda, à terra, à educação e saúde por parte dos índios, dos descendentes dos africanos, de todos os marginalizados pelo sistema econômico e educacional, do vasto oceano dos pobres, que inclui as primeiras vítimas da colonização e as que se seguiram. É aí que se concentram as grandes frustrações, os fracassos da história brasileira, por que não dizer, os pecados, os crimes, as taras que nos envergonham. Mais do que obra inacabada, pois a história humana é sempre, por definição, inconclusa, trata-se de obra truncada, torta, deliberadamente mutilada.
Por isso mesmo, tais problemas têm de constituir a prioridade absoluta da ação coletiva. São eles, de fato, que irão definir o tipo de país que desejamos ser quando crescermos. Quais são, nesse sentido, os fins apropriados ao trabalho conjunto para a edificação do Brasil que sonhamos? Ninguém, imagino, leva ainda a sério o “slogan” do “Brasil grande potência” dos anos 70 ou, também daquela época, a idéia de uma acumulação material concentradora de riqueza, que levou até um presidente de então a reconhecer que a economia ia bem, mas o povo ia mal. O Estado, o governo, a sociedade não podem prometer a felicidade, como se exaltava durante a Revolução Francesa. Podem e devem, porém, como se proclamou na Revolução Americana, garantir a busca da felicidade. Trocado em miúdos, isso significa assegurar que todos e cada um tenham condições para se realizar em plenitude, material e culturalmente.
Equivale a dizer que é preciso não só eliminar a miséria, a ignorância, a doença, mas promover um mínimo de igualdade entre os sexos e entre as classes sociais. Igualdade, em certos casos, vai mais longe do que oferecer as mesmas oportunidades: quando se começa de pontos de partida astronomicamente desiguais, será necessário “discriminar positivamente”, favorecer os mais fracos, dentre os quais os indígenas, os herdeiros da escravidão, paradoxalmente os que foram mais uma vez brutalizados.
Alguns desses fins, como a necessidade de erradicar a pobreza absoluta, parecem comandar certo consenso nacional. Como se viu, contudo, no debate em torno do “imposto da pobreza” ou do aumento do salário mínimo, o ilusório consenso logo se dissipa na hora de cogitar dos meios. A questão central é a da escolha dos meios, isto é, das políticas capazes de conciliar fins igualmente desejáveis: a estabilidade macroeconômica com crescimento mais rápido e distribuição corretiva. Já sabemos que esses objetivos não só não se excluem como se reforçam mutuamente. O problema agora não é de “se”, mas de “como”: indicar quais as medidas concretas para acabar com a pobreza, por exemplo. Gente competente para isso está à disposição do governo, como a equipe do Ipea responsável pelo estudo sobre a pobreza analisado nesta coluna. O que é urgente é um mínimo de entendimento que nos permita sair da paralisia sobre as políticas adequadas para crescer e distribuir sem trazer de volta a inflação. O impasse não pode durar indefinidamente, pois, enquanto isso, os conflitos se multiplicam e se agravam. Acima de todos, o conflito difuso e onipresente da violência no cotidiano, da guerra civil não declarada do crime que ameaça, por trás de suas muralhas, até o Brasil dos vencedores, realizando sinistramente a profecia dos Tupamaros: “Se não houver pátria para todos, não haverá pátria para ninguém”.
“Pátria para todos” poderia ser o resumo do que desejamos para o Brasil no seu aniversário. Sem sonhos de grandeza ou paralelos descabidos. Aplicando à pátria as palavras com que Antonio Candido se referiu à literatura brasileira: “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e, se não a amarmos, ninguém o fará por nós”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30/04/2000.