Uma das excentricidades brasileiras mais difíceis de explicar a um estrangeiro é que, por obra e graça da política municipal de São Paulo, a palavra Cingapura tenha ficado associada entre nós ao problema das favelas, ainda que a título de solução, real ou aparente, para a questão.
Em qualquer outro país, o nome da cidade-Estado asiática é marca registrada de eficiência, qualidade, tecnologia avançada. Ninguém mais lembra que, há algumas décadas, os hoje prósperos habitantes de um dos mais dinâmicos portos do mundo tenham sido obrigados a resolver com sua habitual competência o desafio de uma pobreza igual ou pior que a nossa.
Projeto Cingapura, para quem está acostumado a enfrentar a competição dos produtos com essa marca de origem, é sinônimo de desenvolvimento por meio do comércio, mesmo sem nenhuma base de recursos naturais.
E, por isso, o nome também evoca, neste momento, a primeira reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que, muito apropriadamente, se abre dentro de pouco mais de uma semana num país cuja própria razão de ser é o comércio mundial.
É significativo de como o eixo do comércio e da economia se desloca gradualmente em direção ao Pacífico que esse primeiro encontro se realize no continente asiático, cenário onde acaba também de ocorrer a terceira reunião anual consecutiva do presidente Clinton com seus colegas da Apec (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico).
Na época remota da boa vizinhança, o presidente norte-americano reunia-se regularmente com os chefes de Estado do hemisfério. Durante a Guerra Fria, a ênfase era dada aos problemas político-estratégicos da relação transatlântica e os encontros frequentes privilegiavam os europeus.
Chegou, agora, a vez de a lógica mercantil favorecer os asiáticos. Cinco séculos após o início do deslocamento do eixo do comércio das cidades-Estado do Mediterrâneo em direção às potências atlânticas, o sonho de Vasco da Gama encontra expressão cabal na transformação de Hong Kong e Cingapura na Gênova e na Veneza do nosso tempo, ao menos na prosperidade, se não na irradiação cultural e artística.
Não que os pragmáticos negociadores comerciais, gente de sonhos mais prosaicos, se deixem levar por tais devaneios. E, no entanto, há um ano, mais ou menos, até essa gente alérgica à fantasia chegou a sonhar com a possibilidade de fixar-se na reunião de Cingapura a meta definitiva para a abolição das tarifas e de todas as demais barreiras remanescentes ao livre comércio mundial.
Dizia-se então que, se os dirigentes latino-americanos, conhecidos pela intrepidez ou temeridade, tinham aceito, em Miami, liberalizar o comércio hemisférico logo depois do ano 2000 e os asiáticos, mais cautelosos, se resignavam a 2025, essa última data deveria constituir a meta-limite da liberalização do comércio mundial.
Não tardou muito para perceber, porém, que as condições não estavam maduras para tanto. De um lado, o desemprego, a recessão ou o crescimento arrastado de vastas regiões industrializadas; do outro, a dificuldade de muitos países em desenvolvimento, inclusive o nosso, em digerir o copioso e pesado cardápio da Rodada Uruguai. Tudo tornava pouco apetitosa a tentativa de reiniciar uma maratona de negociações, dois anos apenas após o esfalfante final da anterior.
Para isso, concorreu muito a posição mais realista da principal potência comercial, os Estados Unidos, que se encarregaram, mais do que quaisquer outros, de descartar a idéia de usar Cingapura como plataforma de lançamento de uma nova rodada de negociações.
Acabou, assim, por impor-se aos poucos a convicção de que o objetivo maior da primeira reunião ministerial não poderia ser outro senão a implementação dos acordos já alcançados e o aperfeiçoamento da operação da OMC.
O ministro do Comércio e Indústria de Cingapura resumiu essa abordagem de bom senso ao dizer que as metas da reunião deveriam ser a consolidação, o equilíbrio e o progresso, nessa ordem.
A rigor, pode-se dizer que desses três o mais importante é o equilíbrio, o qual precisa estar presente tanto no exame do atual estágio de implementação dos acordos anteriores como na composição da agenda de negociação de acordos futuros.
Nada de espetacular se espera do encontro. Mesmo nos temas novos, competição e investimentos, as divergências, até entre os desenvolvidos (EUA versus Europa), dão ao momento atual um aspecto totalmente diverso da situação que precedeu ao lançamento da Rodada Uruguai, quando esses centros de poder estavam unidos na comum determinação de integrar ao Gatt o comércio de serviços e as questões ligadas a patentes e propriedade intelectual.
O precedente de comércio e meio ambiente _cuja discussão se arrasta já há seis anos sem ter conduzido a negociações_ e a contínua resistência em aceitar discutir a possível incidência dos padrões trabalhistas nas exportações mostram a dificuldade de negociar soluções, na ausência de um mínimo de consenso e de confiança mútua.
Por essas razões, o máximo que se pode almejar do verdadeiro projeto Cingapura é que confirme uma idéia popular entre negociadores comerciais: a da “teoria da bicicleta”, segundo a qual é preciso algum movimento para não cair.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 30/11/96.