“Você não acha maravilhoso ter tido a sorte de ser a parceira de Fred Astaire?” Irritada com a pergunta que lhe dirigiam pela enésima vez, Ginger Rogers desabafou: “Maravilhoso era eu fazer tudo o que Fred fazia e, ainda por cima, para trás e de salto alto!”.
Posso atestar que a tirada é autêntica e não provém de alguma imitação, ainda que extraordinária, como o “Ginger e Fred” de Fellini. A reação de Ginger traz à luz dois aspectos que não gostamos de ver: o preconceito sistemático de subestimar as realizações femininas e a recusa de reconhecer que a mulher tem de competir a partir de posição extremamente desigual e desvantajosa.
Tem havido alguma melhoria, não há dúvida, em matéria de acesso a empregos e carreiras antes reservadas a homens. Quase não houve evolução, em câmbio, no que permanece a “mãe” de todas as desigualdades: a partilha das tarefas domésticas. O Instituto Nacional de Estatísticas da França (INSEE) publicou um estudo sobre o “Emprego do Tempo”, confirmando que essa dimensão central da disparidade praticamente não mudou.
Em 1999, uma mulher com emprego fora do lar consagrava às atividades domésticas basicamente o mesmo tempo que em 1986: em média, três horas e meia por dia. Em 13 anos, essa carga havia diminuído em apenas quatro minutos. Os homens devotam às ocupações em casa não mais que uma hora e 15 minutos por dia.
Outra pesquisa (do grupo Matisse, formado pelo CNRS e a Universidade de Paris) constatou que as mães dedicam aos filhos o dobro de tempo que os pais, passando 25 horas e 37 minutos por semana com as crianças, contra 12 horas e 41 minutos para os pais. Esses últimos, aliás, evitam o trabalho mais ingrato (lavar, dar de comer, trocar as fraldas), reservando-se o lado mais agradável da socialização dos filhos. As mulheres dedicam ao trabalho não-remunerado 29% do seu tempo (17% em tarefas domésticas, 12% em atividades maternas), contra 15% dos homens (7% tarefas domésticas, 8% paternas) e despendem no trabalho profissional quase tanto tempo como os homens (26%, contra 30%). A diferença mais marcante ocorre na parcela do tempo reservada a fins puramente pessoais (16% do dia para os homens, 11% para as mulheres) e para o sono (39% para os homens, 34% para as mulheres). A conclusão é inescapável: a mulher que trabalha fora exerce na verdade três empregos: o profissional, o cuidado da casa e a educação dos filhos.
Duvido que exista estudo similar sobre o Brasil. Se houver, a primeira distorção virá da existência de empregada doméstica, instituição que desapareceu na França e em outros países avançados. Mesmo descontado esse aspecto, imagino não errar muito se assumir que entre nós os homens ainda se ocupam muito menos dos filhos e do serviço doméstico do que o fazem franceses ou suíços.
É mais fácil, de fato, alterar a legislação e as políticas sobre equiparação de salários e condições de emprego do que modificar o comportamento pessoal. Uma das inspirações do movimento de maio de 68 vinha da frase “é preciso não só mudar de vida como mudar a vida”. Quer dizer, não basta trocar de profissão, renunciar a determinado caminho individual se o contexto coletivo em que estamos inseridos, o ar que respiramos e no qual nos movemos permanece irrespirável. Impõe-se, portanto, mudar a qualidade, a essência da vida social. Daí, na época, a recusa a ingressar na engrenagem da competição materialista, a vida em comunas, a liberação de Eros, advogada por Marcuse, a revolução do rock e até opções destrutivas, como as drogas. Daí também porque, diferentemente das revoluções clássicas, a Francesa ou a Bolchevique, o movimento de maio não visava a conquistar o poder para usá-lo como instrumento de nova opressão, mas desejava alterar a própria essência do poder.
Ora, a raiz da opressão encontra-se em boa medida na relação de dominação homem-mulher, que vitimiza a última, mas ao mesmo tempo desfigura e corrompe o primeiro (afinal, apesar de todas as vantagens, os homens acabam por morrer mais cedo). Superar a dominação exige estabelecer igualdade no amor e na partilha.
Quando se der balanço ao século 20, ao lado da herança monstruosa de Auschwitz e Hiroshima, há de concluir que o melhor do século, além da afirmação dos direitos humanos e da consciência ecológica, foi acima de tudo o impulso para a emancipação e a igualdade das mulheres. Basta de Madames Bovary, de Anas Karenina acossadas ao suicídio, de moças seduzidas e abandonadas como a nossa Clara dos Anjos. E, fora os casos dramáticos, quantas das nossas mães e avós não tiveram de arrastar, por falta de opção, uma existência de calado desespero? Por mais que nos queixemos da época em que nos foi dado viver, não é tão mau assim que já comece a ficar difícil compreender por que Emma Bovary teve de tomar arsênico, por que Eugénie Grandet foi obrigada a suportar a tirania do pai avarento e mesquinho, por que, ao morrer de frustração, Henriette de Mortsauf, o “lírio do vale”, escreveu a Félix de Vandenesse: “Quanto a mim, chego ao lugar do repouso, imolada ao dever e _o que me faz estremecer_ não sem pesar!”.
Quem tem filhas ou netas não pode desejar que elas viam na mesma sociedade que sacrificou essas maravilhosas personagens. Certa vez, em casa de Michel Camdessus, em Bayonne, discutíamos quais as razões concretas para ter esperança no século 21. “A primeira”, disse Michel, “é a emancipação da mulher: é como se, até agora, a humanidade só usasse metade do cérebro e de repente decidisse usar a outra metade”. Seremos capazes de traduzir na vida cotidiana de cada um, nas tarefas humildes do lar, na atenção aos filhos, essa emancipação e sua consequência, a igualdade na partilha do tempo e do repouso, sem hipocrisia e sem comodismo?
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 18/11/2001.