”Na universidade eu ensinava magníficas teorias econômicas sobre o mercado, o crescimento e a renda. Ao sair, encontrava na rua esqueletos ambulantes. Compreendi nesse momento que era melhor ser útil mesmo um dia apenas, ainda que a uma só pessoa, que continuar a viver de abstrações.”
Dias atrás, em Bruxelas, ouvi Muhammad Yunus contar como, em 1974, se transformou de professor universitário em seu país, Bangladesh, em iniciador do que chama de ”revolução na economia”: a criação do primeiro banco dos pobres e o lançamento do movimento de microcrédito.
A aldeia pegada à sua universidade era especializada no artesanato de bambu. Um dia o jovem professor descobre que os artesãos eram escravizados por usurários que lhes extorquiam juros de 10% ao dia em troca do capital minúsculo de que precisavam. Seu primeiro impulso foi dar esmola, mas se conteve. Em vez disso, resolveu emprestar cerca de US$ 30 às 42 famílias da aldeia. Estava lançado numa carreira de banqueiro sem conhecer nada de bancos.
Vinte anos depois, o Banco Grameen ou Rural que fundou está presente em 37 mil aldeias das 68 mil do país. Tem 1.100 agências e 12 mil funcionários, quase todos jovens estudantes que vão, com dinheiro na mão, procurar os clientes na porta das casas. O empréstimo médio é de US$ 160, suficiente para comprar animais, sementes, matéria-prima ou ferramentas simples. Selecionados na base do conhecimento pessoal que une os habitantes das aldeias, os clientes são reunidos em grupos de cinco, solidários uns pelos outros em caso de alguém deixar de pagar. A quase totalidade dos empréstimos é feita a mulheres (94%) e isso num país muçulmano! A explicação é simples: ”As mulheres são mais responsáveis, querem melhorar a vida das crianças e por isso adotam planos de longo prazo para garantir o futuro da família. Os homens não ligam para isso”.
O resultado dessa aventura é que em poucos anos, num dos países mais pobres e instáveis do mundo, o banco dos pobres passou a ter 2,2 milhões de clientes e mais de US$ 2 bilhões emprestados. O banco não faz caridade. O custo de administrar empréstimos tão atomizados é alto. Por essa razão, os juros (20% ao ano) são elevados para padrões internacionais, embora possam parecer até generosos aos brasileiros. A taxa de reembolso (97%) é a mais alta do mundo, provando que os pobres são excelente risco, ao contrário de muitos dos nossos grandes devedores do Banespa, Banco do Brasil e do BNDES. Como diz o fundador do banco: ”Os pobres pagam porque não têm escolha: para eles, o crédito é questão de sobrevivência”.
A partir desse humilde começo, o movimento de microcrédito se espalhou por mais de 60 países. A meta é beneficiar, no ano 2005, 100 milhões das famílias mais pobres ou cerca de 500 milhões de pessoas. Para isso, não será suficiente depender de doações de governos para o capital inicial dos bancos como se vem fazendo até agora. Será necessário captar parte pequena (cerca de US$ 20 bilhões) do astronômico potencial de US$ 20 trilhões que se estima estarão disponíveis nos fundos mútuos e de pensão em alguns anos. O princípio é simples. Se os pobres pagam quase sempre e é bom negócio emprestar a eles dentro de um país, por que não seria igualmente negócio para os investidores internacionais? É aí que entra a instituição para a qual trabalho, a Unctad, ou Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento. Juntamente com o governo de Luxemburgo e um dos maiores bancos privados do país, o Banco Internacional de Luxemburgo, estamos desenvolvendo um projeto-piloto a fim de canalizar ao microcrédito, em bases comerciais, centenas de milhões de dólares que serão garantidos por títulos de liquidez certa, negociáveis no mercado.
Em sua autobiografia recém-publicada (”Para um Mundo sem Pobreza”), Yunus usa uma imagem expressiva: ”A pobreza é uma prisão. O que temos de fazer não é mandar pacotes aos prisioneiros, mas derrubar os muros da prisão”. E prossegue: ”Os pobres não estão na miséria porque são estúpidos, mas por não terem os meios de se evadirem. O crédito, que é um direito humano, lhes dá a oportunidade de manifestar seu potencial”.
Não deixa de haver certa ironia em que, no momento do aparente triunfo da economia global das gigantescas transnacionais, geradoras mais de angústia que de empregos, se assista quase ao seu contrário, ao aparecimento de modalidades inventivas de uma economia do local, do particular, do micro. E que das duas, seja esta a mais capaz de humanizar a economia, criando trabalho, oportunidades de auto-emprego, de independência, de respeito próprio. Será que é porque ela tem a escala, a dimensão do homem?
O microcrédito está longe de ser uma panacéia e seguramente não poderá resolver mais do que alguns problemas limitados. Mas, como diz seu iniciador, movimentos como esse nos dão uma ”fé inabalável na criatividade, no potencial de auto-ajuda dos seres humanos para superar o flagelo da fome e da pobreza”.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 07/02/1998.