“O fato de ser paranóico não quer dizer que eu não esteja sendo perseguido.” Não sei se é anônima ou tem dono essa pérola do paradoxo brasileiro, mas ela se aplica à perfeição às nossas perplexidades diante dos desafios da abertura comercial. Temos medo de negociar, e é sempre feio ter medo. Só que, longe de ser mera paranóia, nosso medo brota da realidade. Sabemos que somos fracos, e não é à toa que receamos competir contra empresas de países mais poderosos.
Medo desse tipo não é absurdo, mas comportamento eminentemente racional que nasce do instinto de autopreservação. Contra ele, de nada valem as invocações dos benefícios da teoria do livre comércio. Nem as declarações de autoridades econômicas em favor de aumentar a competitividade mediante choque de redução unilateral de tarifas. Essas mesmas autoridades que não conseguem fazer o que lhes corresponde para tornar mais competitivas as empresas: baixar os juros e aliviar a carga de impostos.
Só há um modo de lidar com o medo de perigo real: agir sobre as causas, eliminando-as ou atenuando-as. No caso da Alca, não basta conduzir bem as negociações. O governo manteve com firmeza o cronograma original e definiu com nitidez em Québec os parâmetros de negociação equilibrada. Com isso, dispõe-se de tempo mínimo para negociar resultado aceitável, inclusive na fixação dos prazos necessários para eventual liberalização e na identificação dos setores frágeis, merecedores de tratamento excepcional.
A administração do tempo será crucial. É preciso estabelecer os prazos não em função de números mágicos _cinco ou dez anos_, mas à luz de cronograma de ações concretas para remover os gargalos que estrangulam as exportações do lado da oferta, tanto em qualidade como em preço. Pois não se deve ter ilusões: embora enfrentemos sérias barreiras protecionistas, o problema do comércio exterior brasileiro é muito mais de oferta que de acesso a mercados.
Para não ser acusado de palpiteiro, recorro de novo ao modelar informativo da CNI, “Comércio Exterior”, cujo número de dezembro de 2000 analisa as perspectivas para as exportações, com base em sondagem efetuada junto a 14 entidades setoriais, representando 63% do valor exportado no ano passado. O principal entrave ao desempenho exportador, apontado por 11 das associações, é a acirrada competição no mercado externo. Traduzindo em miúdos: temos dificuldade em competir em preço e qualidade ou, em outras palavras, o problema é de oferta. Barreiras protecionistas novas teriam afetado pouco o comportamento das vendas em 2000, na opinião da maioria dos consultados.
Problema de oferta resolve-se em casa, não em negociações internacionais. Se a oferta é pouca ou ruim, investe-se para ampliá-la e diversificá-la. Enquanto o câmbio foi teimosamente mantido engessado, era difícil que alguém, em são juízo, investisse no Brasil a fim de gerar exportações que se viam desencorajadas pelo regime cambial. Removido o obstáculo, estaria agora voltando esse investimento, sumido desde uns 17 anos? Aparentemente não na escala e velocidade desejáveis.
Uma das razões é o custo financeiro do capital, dados os juros altíssimos e instáveis que aqui se praticam em contraste desequilibrador com os juros cada vez mais baixos obtidos pelos concorrentes americanos. Além disso, no âmbito interno, assinala a CNI, as questões “associadas à elevada carga tributária, a problemas de logística, com ênfase nos custos portuários e na burocracia”, são os fatores indicados como tendo afetado fortemente o desempenho exportador da maioria dos setores.
A pedido meu, um amigo empresário forneceu-me algumas ilustrações concretas dos problemas. Um equipamento importado a custo CIF (incluído o frete) de US$ 1.050 acaba saindo por US$ 1.490, após a incidência do Imposto de Importação, IPI, ICMS, despesas de internação e frete interno. Se a máquina é nacional, o acréscimo é de US$ 193 de impostos, mais US$ 50 em ônus diversos (no primeiro caso, os impostos chegam a US$ 350, e as demais despesas, a US$ 132). Uma operação de descarga, armazém e transbordo para ferrovia custa US$ 9/ton. em Antuérpia e US$ 25 em Santos. O frete rodoviário em São Paulo é o dobro do europeu. Em Paranaguá, mesmo se os terminais estão a dez metros do navio, cobra-se taxa de US$ 10/ton. para o transporte de caminhão. Navios de 5ª geração, capacitados a realizar por computador as manobras mais complexas, são obrigados a entrar em Santos conduzidos por um ou dois rebocadores, ao custo de US$ 10 mil/rebocado. A lista de horrores continua por páginas e páginas, com detalhes dos mais inverossímeis.
Assim, realmente, não há competitividade que aguente. Se quisermos nos livrar do justificado medo de negociar na OMC ou na Alca, temos de atacar de modo sistemático e decidido esses problemas, cuja natureza é prática, nada tendo a ver com ideologia, debate sobre globalização ou negociações internacionais. O (quase) impossível já conseguimos: restabelecer alguma estabilidade, embora frágil, após 40 anos de inflação crônica. Falta agora o apenas difícil: dar à estabilidade base menos dependente de recursos financeiros voláteis, resolvendo o nó do estrangulamento externo por meio do aumento das exportações.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 29/04/2001.