Como Vinicius, “quero rever-te, pátria minha”. O problema é que, no ano passado, quando te revi, acontecia o sequestro do ônibus no Rio, que terminou com a costumeira tragédia policial de brutalidade e inépcia. Neste ano, revi-te de novo e sucedia outro sequestro mediático, concluído com a mesma tragédia desnecessária.

Antes era pior e as calamidades tinham nome coletivo: Carandiru, Candelária, ianomâmis, Vigário Geral, Carajás. Será que aprendemos algo ou os massacres tornaram-se silenciosos, cumulativos, a somatória semanal de cadáveres anônimos dispersos por periferias que ninguém sabe onde ficam, interrompidos de vez em quando por vítimas de maior nota, como os comerciantes portugueses do Ceará?

“Que país é este?” Affonso Romano de Sant’Anna respondia: “Uma coisa é um país, / outra um ajuntamento/ … Uma coisa é um país, / outra o aviltamento”. Sei que o Brasil não é só sequestros, chacinas, massacres ignóbeis. No momento em que ocorria o drama do ônibus, vi outros ônibus, uma caravana deles, que despejavam crianças dos subúrbios para visitar a mostra “Brasil, 500 Anos”. Fui também ouvir a Orquestra Sinfônica na Estação Júlio Prestes renovada. Soube desta vez que “Medéia” está imperdível. Vou perdê-la, não vi, mas gostei e acredito, pois, desde a mágica distante de Peer Gynt e a embriaguez da estréia de “Macunaíma”, faço parte da religião de Antunes Filho.
Estive na noite de autógrafos de Betty Mindlin, que assinava os exemplares com dois índios de Rondônia que lhe explicaram o mistério do mundo com as palavras da tribo. Onde, em que outra universidade ou academia encontrar essa igualdade no respeito à cultura do outro, essa limpeza de alma e honestidade de aceitar partilhar a autoria com os donos da tradição? O Brasil é isso e aquilo, o mal e o bem, o político gângster da Amazônia e o professor Antonio Candido, os “justiceiros” de periferia com 30 mortes às costas e os círculos de leitura em que adolescentes de Diadema retraçam a jornada de Ulisses na “Odisséia”.

Será que, como na Comunhão dos Santos, o sangue dos inocentes, a abnegação da enfermeira de moribundos ajudam a equilibrar a torpeza covarde dos torturadores, a impiedosa avidez dos podres de ricos e ricos podres? Sabemos que “de tudo fica um pouco”, mas pode ser que de tudo fique muito. É melhor assim que, progressivamente, o país se construa com mais graça e menos pecado.

Para tanto, nas palavras do apóstolo Paulo, é preciso que onde abundou o pecado superabunde a graça. De escassez do primeiro é que não nos podemos queixar, desde os originais e fundadores: a conquista, o extermínio, o esbulho da terra, a escravidão. Mas não podemos ficar a vida toda justificando pelo pecado original os vícios que praticamos agora. Meus colegas da ONU na área de direitos humanos dizem encontrar no Brasil interlocutores muito mais amáveis, sofisticados e abertos do que em outros países. Todos reconhecem o passivo, mas logo buscam refúgio no passado de escravidão, na complexidade de país difícil de governar _ao menos nestas horas_, nos limites da Federação, da Constituição de 88. Não quero simplificar, mas não haverá algum espaço para um pouco mais de ação vigorosa e mobilizadora, de liderança moral do Executivo federal em tal domínio? Na ocasião do massacre de Vigário Geral, sugeri que se decretasse luto nacional por três dias e que o presidente, em nome da nação, conclamasse a um esforço coletivo para superar o intolerável.

Pode ser ingenuidade, mas creio existir ainda potencial positivo para a afirmação da vontade humana, como se está vendo no caso dos remédios.
Haverá sempre mistura e impureza, tensão e contradição dialética, mas o país já atingiu nível de maturidade e consciência para começar a reagir. Cada vez que volto, tenho boas surpresas com a variedade dos jornais, a qualidade dos colunistas, a riqueza dos suplementos culturais, a compensar talvez a pobreza de revistas especializadas. Não temos mais Drummond nem Rubem Braga, mas estão aí Millôr e Veríssimo para nos consolar. Descobri recentemente Daniel Piza, que, no domingo passado, fazia em “O Estado de S. Paulo” comentários muito inteligentes sobre São Paulo, inóspita e feia no espaço público, cativante e acolhedora no privado. Dizia ele que faltam parques, bibliotecas ativas, sistema de transporte público eficiente, mas que, atrás dos muros, os ambientes podem ser belos e sedutores. Acessíveis a uma minoria culta, esmagada pelos novos-ricos que humilham os empregados e vivem em casas blindadas, tais ambientes contrastam com os espaços sociais desvirtuados pelo estatismo e o capitalismo selvagem.

Ele pôs o dedo na chaga e disse sobre a cidade o que, séculos atrás, afirmava sobre o país frei Vicente de Salvador, ao observar que “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Confessava o bom frade que percebera isso não por si mesmo, mas por tê-lo ouvido de um bispo de Tucumán que por aqui passara, “homem de bom entendimento e prudência… (que) notava as coisas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe traziam, porque não se achava na praça nem no açougue e, se mandava pedir as ditas coisas … às casas particulares, lhas mandavam … (comentando) o bispo: verdadeiramente, que nesta terra andavam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”.

É preciso acrescentar alguma coisa? Para Vinicius, a pátria era íntima doçura, vontade de chorar. Tinha vontade de niná-la, de beijar-lhe os olhos, de passar-lhe a mão pelos cabelos como se acariciasse a mulher amada. Mas queria também mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias da pátria sem sapatos e sem meias, da sua e nossa pátria, “pátria minha tão pobrinha!”.

Pobre e fraca é, com efeito, a nossa pátria, comparada às grandes, parafraseando o que escrevia Antonio Candido sobre a literatura: “Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e, se não a amarmos, ninguém o fará por nós”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 09/09/2001.