Você sabia que era luso-brasileiro um quarto da população de Buenos Aires pouco após 1640, a ponto de ser rara a família portenha antiga sem antepassados lusitanos? (Borges contou-me que tinha ascendentes portugueses nos dois lados.)
Você sabia que, em época de reduzida população européia na América, ao decretar-se após a dissolução da união das coroas ibéricas a expulsão dos portugueses do Peru, apresentaram-se nada menos que 6.000 indivíduos dessa origem, os quais conseguiram revogar a medida graças a grande donativo? Colhi essas pérolas na obra-prima de pesquisa de história econômica, infelizmente sem imitadores, que é “O Comércio Português no Rio da Prata (1580-1640)”, da professora Alice Piffer Canabrava, originalmente publicada como tese de doutorado, em 1944.
Tudo isso foi hoje sufocado pelo mato do esquecimento e tem sabor de curiosidade de almanaque. É bom lembrar, contudo, que, ao menos na América do Sul, a união ibérica, os reinos dos três Felipes, nem sempre foram, como os descrevem alguns exaltados patriotas lusitanos, o período do “cativério de Babilônia”. E que, durante o breve interlúdio em que o comércio entre os territórios dos futuros Brasil e Argentina foi permitido ou tolerado a “regrañadientes”, floresceram para benefício mútuo todos os tipos de intercâmbios humanos e econômicos de um lado para o outro das possessões coloniais das duas coroas. Inclusive no domínio cultural e artístico, em que os artesãos luso-brasileiros deixaram rica herança de esculturas, dentre elas o cristo da catedral de Buenos Aires, ironicamente talhado por Manuel de Coyto, condenado pouco depois pela Inquisição (muitos luso-brasileiros eram cristãos-novos, judeus ou “judaizantes”, como se dizia), e a venerada imagem da padroeira da Argentina, a Virgem de Luján, de barro cozido, importada do Brasil por volta de 1630. Algumas das mais belas peças da estatuária, do mobiliário e da prataria dessa origem foram reunidas na inesquecível exposição “El Arte Luso-Brasileño en el Rio de la Plata” (Museo de Arte Decorativo, Palázio Errázuriz, Buenos Aires, 1966, Sesquicentenário da Independência argentina), organizada pelo meu querido ex-chefe e mestre embaixador João Hermes Pereira de Araujo, conhecedor sem rival da história e da arte do Brasil, hoje diretor do Museu Diplomático do Itamaraty, no Rio de Janeiro.
Não é assim exagerado suspirar pelo que teria podido ser a história de nossos povos. E que não foi porque logo se interpôs o espírito mesquinho e acanho do colonialismo mercantilista de então, para o qual colônia era sinônimo de monopólio estéril e ciumento, o “exclusivo” como era às vezes chamado. Foi ele que durante séculos nos condenou ao isolamento e antagonismo, à repressão de todo comércio como contrabando. Dessa herança de inimizade e conflitos fronteiriços chegou até nós a mentalidade de Estado Maior, para a qual a provável hipótese de guerra era sempre contra o vizinho. Natural, portanto, que fosse questão fechada de segurança nacional desestimular a construção de pontes, ferrovias ou rodovias que iriam facilitar o avanço dos exércitos “castelhanos”, como foram popularmente chamados no Rio Grande muito depois que os espanhóis tivessem deixado em definitivo o Rio Prata.
Você sabia que a primeira ponte sobre o rio Uruguai, unindo o Brasil e a Argentina em Uruguaiana, teve de esperar quatro séculos após o início da nossa colonização a fim de ser inaugurada, em 1947, pelos presidentes Dutra e Perón? Você sabia que, até recentemente (se não continua ainda hoje), a maior concentração de tropas brasileiras se encontra na região de Santa Maria, a estratégica distância das fronteiras meridionais?
Como resultado cumulativo de tudo isso, no momento da redemocratização, os governos civis em fase de consolidação descobriram-se herdeiros dos programas nucleares paralelos que, cedo ou tarde, haveriam de inelutavelmente agregar à longa lista de problemas socioeconômicos à espera de solução um que certamente estaria de sobra: a introdução na América do Sul da ruinosa corrida pela bomba atômica e seus vetores, como ocorre entre a Índia e o Paquistão. À falta de condições para ação drástica imediata optou-se pelo caminho gradual de edificar a confiança mútua mediante a criação de laços de integração comercial cada vez mais fortes. Na raiz do processo está a viagem do chanceler Olavo Setubal a Buenos Aires. Ao voltar impressionado pelas queixas argentinas contra o desequilíbrio do intercâmbio, obteve do presidente Sarney apoio para convocar reunião dos ministros econômicos na qual se decidiu a “opção preferencial” pela Argentina, a começar pela importação do trigo. Daí iriam surgir o acordo de bens de capital, os demais acordos de integração com mecanismos equilibradores, semente do futuro Mercosul. Em seu devido tempo, a segunda trilha, a política e de segurança, conduziria ao acordo de salvaguardas nucleares com a Agência de Energia Atômica e entre a Argentina, o Brasil e o Chile, selando o fim dos programas paralelos.
Foi, no fundo, a repetição, no continente sul-americano, do que já se tinha passado na Europa. Lá também o histórico Tratado de Roma para a criação do Mercado Comum Europeu nasceu não de um cálculo qualquer de natureza comercial, mas da determinação de superar de uma vez por todas os antagonismos entre franceses e alemães ou com outros europeus, origem da incomensurável tragédia de duas guerras que, antes de se tornarem mundiais, haviam sido guerras civis européias. É fácil ceder à irritação diante das frustrações do Mercosul, das atitudes de vizinhos que, com ou sem razão, percebemos como hostis ou de incompreensão. Nessas horas, é bom não perder de vista esse quadro mais amplo, histórico, cultural, de segurança, dentro do qual se insere o esforço de integração comercial.
Não faz muito tempo o panorama do continente era mais de tensões e conflitos latentes que de oportunidades construtivas. Mas nesse ponto podemos pôr de lado a frustração e admitir que fomos capazes de resolver ao menos alguns desses problemas: os nossos com a Argentina (Itaipu, rivalidade nuclear), o do Beagle e outros entre o Chile e a Argentina, o do Peru-Equador e Peru-Chile. Abre-se, enfim, uma janela. Chegou o momento, na Cúpula Sul-Americana a realizar-se em Brasília, dentro de poucas semanas, de consolidar esses avanços e dar um passo adicional no caminho da construção de uma América do Sul cada vez mais integrada e solidária.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 20/08/2000.