Nesta semana de celebração dos 50 anos das Nações Unidas, o grande ausente da festa tem sido o desenvolvimento.

Fala-se muito no papel da ONU na manutenção da paz. Discute-se a crise financeira que a afeta e está na moda acusá-la de ineficiência, como se os países que a integram fossem modelos nesse terreno.

Ninguém nega que sem ela os direitos humanos, o meio ambiente, a proteção da infância, a promoção da mulher ainda estariam, provavelmente, na idade da pedra.

Pouca gente, porém, parece dar-se conta de que foi igualmente decisiva sua contribuição para criar na opinião pública mundial a consciência das disparidades de nível de desenvolvimento e bem-estar, assim como a dos riscos decorrentes dessa situação para a estabilidade mundial.

Talvez tenha sido o papa Paulo 6º quem melhor expressou tal ligação ao propor que, hoje em dia, o desenvolvimento seja considerado o novo nome da paz.

Foi essa inspiração que dominou o pensamento de dois grandes pioneiros da teoria do desenvolvimento: o sueco Gunnar Myrdal e o argentino Raúl Prebisch.

Graças a homens como esses, as Nações Unidas começaram, logo após o fim da 2ª Guerra Mundial, a chamar a atenção para desequilíbrios crescentes entre a riqueza e o crescimento de uma pequena parte da comunidade internacional e a pobreza, estagnação e falta de esperança da imensa maioria.

Ao contrário dos participantes da reunião de Bretton Woods (1944), preocupados sobretudo em gerar condições para restaurar a prosperidade e a estabilidade das economias avançadas da Europa e da América do Norte, os “pioneiros do desenvolvimento” (título de uma coletânea de textos dedicados a esses economistas pelo Banco Mundial em 1984) angustiavam-se com o atraso aparentemente sem perspectivas de mais de três quartos da humanidade.

Mais do que o impulso econômico, o que os movia era a exigência ética, a inaceitabilidade moral das disparidades, a necessidade de dar à então recente Declaração Universal dos Direitos Humanos um solo firme sobre o qual seria, enfim, possível edificar direitos de verdade e não apenas de papel.

O abismo que separava então (como hoje) os industrializados dos subdesenvolvidos parecia cada vez mais sem fundo e escancarado.

Nessas circunstâncias, como seria possível assegurar o entendimento e a comunicação, fundamentos da paz, entre povos cuja diferença de nível ameaçava transformá-los quase em espécies humanas distintas, habitantes de uma nova torre de Babel?

A fim de imprimir um tom dramático a esses contrastes, o delegado brasileiro a uma reunião do Conselho Econômico e Social da ONU e futuro embaixador Miguel Osório de Almeida recorreu a uma imagem chocante. Se o abismo continuasse a se alargar, dizia ele, não estaria longe o dia em que, nos países ricos, os pais teriam de levar os filhos ao jardim zoológico para mostrar em alguma jaula esse estranho animal que seria o habitante de um país subdesenvolvido!

Todo esse esforço de conscientização veio a culminar, em 1964, com a realização da primeira grande conferência das Nações Unidas sobre o comércio e o desenvolvimento, que se converteu na instituição permanente onde hoje trabalho, a UNCTAD.

Fruto do pensamento de Raúl Prebisch, que foi seu primeiro secretário-geral, a UNCTAD teve sempre a missão central de ajudar a comunidade internacional a chegar a um consenso acerca das políticas mais adequadas para promover o desenvolvimento.

Nesse sentido, sua originalidade é procurar encarar os diversos elementos da economia mundial _moeda, finanças, comércio, investimento, tecnologia_ não isoladamente, como tendem talvez a fazer outras organizações, mas na sua interdependência global.

Nesse esforço de análise, a preocupação da UNCTAD não é apenas o desejo acadêmico de entender, nem algum propósito utilitário ligado à promoção de um dos elementos do conjunto. Sua finalidade é contribuir para que a moldura formada pela economia internacional seja a mais favorável possível às aspirações de desenvolvimento dos mais pobres.

Construir um consenso nessa matéria não é tarefa simples. Afinal, o desenvolvimento é o somatório de numerosas políticas econômicas e sociais que mexem diretamente com os interesses difíceis de conciliar de classes, setores e países. Acaba, assim, sendo inevitável o seu envolvimento com os conflitos de ideologias, na medida em que as diferentes visões do mundo refletem diferenças de concretos interesses de classe.

O destino da UNCTAD tem sido, portanto, inseparável da controvérsia, tanto durante o apogeu do conflito norte-sul, nos anos 70, como no momento da desintegração do comunismo soviético.

Tudo isso, porém, se dava num mundo onde se aguçavam as heterogeneidades, as divergências da Guerra Fria. O que é novo para a ONU e a UNCTAD, e será a tarefa central do meu período de trabalho, é repensar agora o desenvolvimento num mundo de crescente convergência e homogeneidade.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/10/95.