“Uma vida humana não vale nada, mas nada vale uma vida humana.” Essa frase encerra todo o potencial de contradição que existe entre o capitalismo, que tende a tudo reduzir a mercadoria, e valores como a vida humana, irredutíveis por natureza (é preferível, como fez Galbraith, dar nome aos bois: economia de mercado é expressão anódina, vivemos na verdade um regime capitalista).
Lembrei na semana passada que, no tempo do capitalismo mercantilista, estimava-se que 27% da mortalidade dos escravos antes e depois do transporte constituía parcela razoável da estrutura de custos. Em certas áreas de mineração do Brasil, o escravo durava em média cinco ou seis anos e era mais “econômico” comprar um novo que tentar prolongar a vida dos que ainda não tinham morrido.
Uma saída fácil é dar de ombros e dizer: isso foi no passado e, de qualquer modo, está superado, pois o capitalismo moderno é incompatível com a escravidão. Mas será mesmo que a sensibilidade ao humano da economia atual é qualitativamente muito superior à de outrora? Num país como o nosso, não é preciso procurar muito para demolir a ilusão. Afinal vivemos em sociedade que tolera (ou não quer saber) que os trabalhadores de carvoarias de Mato Grosso do Sul fossem até há pouco (não sei se são ainda) reduzidos à situação de escravos, o que está longe de ser caso único entre nós. Ou que teve de esperar por reportagem em jornal americano para descobrir que, no sertão da Bahia, crianças de menos de dez anos acabam mutiladas na colheita das afiadas folhas de sisal, em troca de pouco mais de US$ 1 por uma semana de trabalho.
E não se diga que isso apenas ocorre em situações pré-capitalistas de nação definida pela sua autoridade máxima como mais injusta que pobre. Também na economia mais rica do mundo, 36 milhões de pessoas não dispõem de nenhum seguro de saúde e não existe medicina pública como alternativa. Quem pensa que o tráfico de gente só sobrevive nos versos de Castro Alves não precisa mais que visitar as exposições de Sebastião Salgado para se convencer da existência de florescente, organizado e impiedoso comércio para suprir a Europa e os EUA de carne humana para moer no trabalho duro e mulheres e crianças para satisfazer caprichos e perversões da libido dos ociosos.
Diante disso, não se pode fugir da questão: é a economia autônoma, neutra em relação aos valores da moral (palavra melhor que a escorregadia “ética”) ou deve ser firmemente subordinada e enquadrada por esses valores? A resposta depende da que antes se der a outra pergunta: pertence a economia à categoria de fenômenos como os do sistema planetário, regidos por leis imutáveis, além do nosso controle, ou, ao contrário, se insere entre as expressões da vida social e da cultura humana? Se somos escravos do determinismo econômico, nada há a fazer, como diz a direita, a não ser talvez tocar um tango argentino (o que pareceria particularmente apropriado no momento).
Não é preciso, porém, gastar muito latim para demonstrar o óbvio: toda economia, a capitalista ou a consumista, a industrial como a do passado ou a das culturas indígenas, é sempre o resultado de escolhas sociais, baseadas em conjunto de crenças e valores que variam de um caso para outro. Essas opções não são obviamente ilimitadas. A margem de escolha tem de ser exercida dentro dos limites impostos por realidades como a escassez ou a abundância de capital, trabalho, recursos naturais, tecnologia etc.
Se assim é, a primeira condição para possibilitar a escolha é impedir que a economia continue a exercer uma dominação imperialista sobre a política, a cultura e a sociedade. O filósofo americano Michael Walzer é um bom guia nesse sentido. Em comunidades pluralísticas como as modernas, diz ele, não pode haver um princípio de justiça único, mas diversos, cada um aplicável a uma das “Esferas da Justiça” (nome de um livro seu) em que se dividem essas comunidades. Em cada esfera há um bem específico, um objetivo buscado por todos, mas que tende a ser monopolizado por um pequeno grupo: o dinheiro na esfera econômica do mercado, o poder no reino da política e da administração, o lazer no mundo da diversão, o conhecimento no campo da educação, a mediação com Deus por meio dos símbolos sagrados na religião, o amor no universo da família.
O perigo se manifesta quando uma dessas esferas predomina totalmente sobre as outras. Em tal caso, os senhores dos mercados, por exemplo, podem utilizar sua esmagadora vantagem em dinheiro para controlar os bens particulares a outras esferas, tornando-se também os donos do poder, do conhecimento, do lazer. É um pouco o que vem sucedendo hoje em dia, quando o dinheiro decide as eleições nas maiores democracias do mundo, os lobistas ditam as leis, inspiram a política comercial, alimentam a corrupção dos partidos. Quando o conhecimento, a ciência, a tecnologia, as patentes fazem explodir a especulação do índice Nasdaq e das Bolsas, bloqueiam com sanções comerciais o acesso dos mais atrasados ao saber, privilégio reservado aos afortunados, determinam, por meio do financiamento das fundações, em que direção se fará a pesquisa em ciências sociais. Alguém duvida de que o dinheiro igualmente dê as cartas no tabuleiro da diversão nesta era da influência avassaladora das redes de TV e do monopólio de Hollywood sobre a cultura pop?
No totalitarismo nazista ou stalinista, foi o poder que absorveu as demais esferas, da mesma forma que a religião desempenhou esse papel no fundamentalismo do passado ou do presente. Cada vez que isso aconteceu, os valores e os direitos humanos se deram mal, tornando-se necessário restabelecer o equilíbrio e a harmonia das esferas, sem os quais não pode haver escolha, pois somos obrigados a engolir as opções que os manipuladores de mercados financeiros fizeram por nós, como demonstra o cotidiano da política macroeconômica argentina e brasileira, reféns da chamada “opinião informada de Wall Street”.
Restabelecer esse equilíbrio implica resolver a questão central e decisiva da economia globalizada: qual é o papel legítimo e desejável da competição, quais os ganhos de eficiência que promete e os limites razoáveis a lhe ser impostos por valores humanos e sociais mais altos.
Isso terá, contudo, de esperar pelo próximo episódio, se para tanto não me faltarem engenho e arte (além, é claro, da benevolente indulgência dos leitores).
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 04/06/2000.