Ao remexer velhos papéis em minha recente mudança para Genebra, redescobri um recorte amarelecido do artigo ”Gigante impotente”, publicado nesta Folha anos atrás.
Nele, Wanderley Guilherme dos Santos comparava o Estado brasileiro não propriamente a um gigante a sufocar a sociedade civil, mas a um mostrengo disforme, com partes do corpo descomunais e outras atrofiadas. Uma espécie de Quasímodo, o trágico ”Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo, que nos assustou quando crianças na versão de Charles Laughton e agora volta pasteurizado num simpático dançarino no último desenho de Walt Disney.
As deformidades eram obviamente as estatais, o setor de produção onde o governo não precisava ter se metido, enquanto a atrofia ficava por conta das coisas que o Estado devia fazer e não faz ou faz mal, como saúde, educação básica, segurança dos cidadãos, Justiça, etc.
Tudo isso vem a propósito do movimento pendular que, depois de valorizar quase obsessivamente, nos últimos anos, o mercado e as empresas como fatores de desenvolvimento, começa agora a voltar a atenção para a necessidade de um Estado eficiente e capaz.
Na abertura da 9ª Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), na África do Sul, o diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, chegou a dizer que, em certos países em desenvolvimento, a figura principal do governo deveria ser o ministro da Justiça e não o da Economia.
Por seu lado, o Banco Mundial se prepara a dedicar seu relatório do ano próximo à urgência de dotar países em desenvolvimento de um setor público capaz de criar condições que possibilitem o crescimento sustentável e equilibrado.
Essa volta a uma prioridade tradicional corresponde não só ao bom senso, mas às conclusões de pesquisas histórico-econômicas que valeram aos autores um Prêmio Nobel de Economia há poucos anos.
Demonstrou-se então que, muitas vezes, a qualidade das instituições públicas, a adequação da lei a uma economia moderna, a segurança e a rapidez das decisões judiciais, a correção e continuidade da política macroeconômica eram elementos muito mais determinantes do desenvolvimento do que a abundância dos fatores de produção e dos recursos naturais.
É o que se vê, por exemplo, no Chile, onde não é por acaso que a única experiência de sucesso provavelmente consolidada na América Latina coincida com o mais competente setor público da região.
Chega, assim, ao término a cansativa polêmica entre defensores de um Estado intervencionista e sufocante e advogados de um impossível mercado perfeito, que se abstrai do governo e, pela ”mão invisível”, gera equilíbrios automáticos.
Hoje, ninguém mais contesta que, sem leis, instituições e políticas adequadas, o mercado e as empresas não dispõem da atmosfera necessária para respirar e prosperar.
Desse ponto de vista estamos mal. Hélio Jaguaribe dizia que o Brasil teve, até os anos 70, um dos melhores setores públicos do Terceiro Mundo, mas que, desde então, a situação não cessou de se deteriorar.
Alguns se consolam com a idéia de que o setor privado realizou seu ajuste mais rápido e melhor do que o governo, como provam os aumentos de produtividade. Mas até quando poderá ele sozinho compensar a ineficiência do setor público?
É por isso que a reforma administrativa não deveria buscar apenas o equilíbrio orçamentário por meio de economia com cortes de pessoal, mas sim visar ganhos de eficiência por meio da criação de um serviço público profissionalizado, selecionado e promovido na base do mérito, organizado em carreiras e decentemente remunerado.
O ”civil service” inglês e o serviço público francês são modelares nesse sentido. Para lá chegar, porém, é preciso erradicar de uma vez por todas o funesto sistema pelo qual os partidos nomeiam indiscriminadamente até funcionários encarregados de fiscalizar impostos ou normas ambientais.
O ideal seria permitir apenas limitadíssimas nomeações fora da carreira para alguns poucos cargos de DAS, como já ocorre no Itamaraty, no Banco Central, no Banco do Brasil e no Tesouro, não por coincidência as ”ilhas de excelência” do nosso serviço público.
A culpa não é dos funcionários, mas do sistema político, único competente para decidir sobre a reforma. E nele, infelizmente, concentram-se os amigos de Quasímodo, empenhados em preservar as deformidades das estatais e do empreguismo.
Se continuar assim, em vez do ”happy end” de Disney, vamos de novo ver o velho final triste do livro de Victor Hugo.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 13/07/96.