O grave episódio de deslegitimação de certas práticas privatizantes que acaba de viver o país serviu ao menos para valorizar, por contraste, os velhos e vilipendiados servidores públicos brasileiros. Como alguém que jamais teve na vida outra ocupação, com a agravante de aposentado e, nessa qualidade, co-responsável, ao que consta, pelo déficit orçamentário, sinto o dever de dizer uma palavra em favor da categoria a que pertenço, uma “apologia ‘pro vita sua'”.

Existe entre nós o preconceito de que homens do setor privado são a priori melhores para administrar o país e formular planos econômicos. Mas será mesmo verdade?

É claro que, em princípio, nenhuma categoria tem o monopólio do patriotismo, do espírito público ou da probidade e eficiência. Há exemplos convincentes tanto das vantagens do sistema americano de recorrer ao setor privado como da tradição francesa (que vem de Colbert) e européia, em geral, de utilizar funcionários de carreira para a maioria dos cargos, reservando aos políticos eleitos os postos ministeriais e poucos outros.

A questão, portanto, é mais de cultura que de suposta superioridade inerente de uma ou outra abordagem. Falou-se em “cultura da privatização”, mas melhor seria falar em cultura do setor privado ou do setor público. Cultura é sistema de valores, crenças e práticas. Na área privada, a cultura se organiza em torno da busca da auto-realização por meio do êxito material. Isto é, a eficiência tem como recompensa a fortuna.

Em contraste, não se abraça, salvo as exceções aberrantes, o serviço público para ficar rico. A recompensa terá de vir por outros caminhos: o prestígio da promoção, a consciência de servir o bem comum, de promover os interesses da comunidade e não os particulares, por mais legítimos e respeitáveis.

A nós, servidores públicos por vocação, não faltam exemplos de brasileiros que souberam honrar a categoria. Cito, de início, aquele que deveria ser, se já não é, nosso patrono, Machado de Assis, para não mencionar Carlos Drummond de Andrade, Simões Lopes, fundador do Dasp e da Fundação Getúlio Vargas, Guimarães Rosa, que conheci como competente chefe da Divisão de Fronteiras do Itamaraty. O nome mais ilustre de nossa história diplomática, o único brasileiro, no dizer de Oliveira Lima, a ter acrescentado o patrimônio nacional, Rio Branco, não foi político, mas funcionário de carreira e da menos prestigiada, a consular.

Ao lado desses, reconhecidos e valorizados, há a legião de anônimos que ajudaram a construir o Brasil, os sanitaristas, de Oswaldo Cruz, Mario Pinotti e Nelson de Morais, aos humildes “mata-mosquitos”; os educadores, de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, às abnegadas professoras primárias; os engenheiros hidrelétricos, de John Cotrim a Mario Bhering; os sertanistas, como Orlando e Claudio Villas Bôas, os do Ibama; das ilhas de excelência como o Itamaraty, do Banco do Brasil, o Central, a Embrapa, o Ipea, o IBGE. Se algumas ou muitas dessas áreas se deterioraram, a culpa quase sempre foi de políticos que lhes saquearam as verbas ou as deixaram à míngua, as aviltaram com nomeações de corruptos sem concurso nem competência, lhes negaram salário digno e remunerador.

Tudo isso culminou com o desmonte do Estado brasileiro empreendido em nome da ideologia dominante e por meio de reformas administrativas frequentes, mal concebidas e pior implementadas. É bom lembrar que foram pessoas sem a formação do serviço público que perpetraram crimes como o confisco da poupança e a demolição de vastos setores da administração, incluindo arquivos, a partir de 1990, sem ter posto nada no lugar.

Duvido de que a quarentena resolva o problema de separar a esfera do público da do privado no caso da nomeação de pessoas inspiradas pelo valor do êxito material. O melhor seria dar condições de trabalho e remuneração satisfatórias a carreiras como a do Tesouro, da Receita ou criar algo semelhante aos inspetores de finanças franceses. Afinal, não havia essa relação incestuosa com o mercado no tempo em que os assessores dos ministros da Fazenda eram retirados dos quadros do Banco do Brasil ou dos fiscais do imposto do consumo, como Casimiro Ribeiro ou o grande tributarista Gerson Augusto da Silva. Pois a verdade é que a cultura do serviço público torna mais fácil separar o que nunca se deveria ter misturado. Como sabem os que conheceram, por exemplo, a geração heróica dos companheiros de Rodrigo M. Franco de Andrade no Patrimônio Histórico e Artístico. Gente como Luiz Saya, em São Paulo, Renato Soeiro, Godofredo Filho, na Bahia, argutos, fiéis, eruditos, sutis, principalmente íntegros e austeros. Apesar de viver em meio de tesouros de arte, nenhum deles, a começar pelo chefe exemplar, jamais aceitou colecionar, a fim de evitar a tentação de saquear igrejas e tornar privado o que se deve preservar como público. Não possuíam um quadro, uma escultura, eram franciscanos da beleza.

Outros povos podem talvez recorrer à cultura privatista para gerir o governo sem riscos graves, embora o problema seja sério até nos EUA. Que dizer de país onde, segundo me lembrava meu amigo Fábio Konder Comparato, inigualável jurista do setor privado com incorruptível espírito público, já em 1627, frei Vicente do Salvador advertia “que nenhum homem nesta terra é repúblico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/11/1998.