Estou na situação daqueles viajantes frequentes que acordam à noite e de repente não sabem se estão em Hanói, Ha Long, Bruxelas, Nova York, Washington, Paris, Genebra ou Beirute, para não citar senão as cidades que visitei nos últimos 12 dias. Haverá quem inveje esse tipo de vida. Quando passei o fim do ano no Brasil, vi num noticiário de TV que algumas pessoas planejavam esperar a meia-noite do Ano Novo com uma valise vazia na mão a fim de atrair a possibilidade de viagens.
A esses posso garantir que não há nada de divertido em começar a ver o mundo como peças desconexas de um caleidoscópio, que se embaralham e formam uma figura nova cada vez que nos movemos. Para tentar fixar alguns desses desenhos, rabisco às vezes impressões apressadas como as do artigo da semana passada sobre o Vietnã. Desta vez, olhando as ressecadas montanhas de Tessalônica da janela do avião que me leva de Beirute a Viena, esboço um instantâneo igualmente superficial de minha rápida experiência libanesa.
Beirute lembra em alguns aspectos a Brasília em construção que conheci em 1959, um imenso canteiro de obras com escavadeiras e caminhões-cimento por toda a parte. O aeroporto inaugurado dez dias atrás, o hotel, a sala de conferência onde se realizou o seminário que vim abrir, tudo é novo, reluzente, mármores, madeiras e couros sem rachaduras, rasgões ou outras agressões do tempo.
Basta, contudo, cruzar uma avenida e a gente se descobre, do outro lado, em meio a “Waste Land”, à terra devastada: esqueletos enegrecidos de edifícios, muros com buracos de balas mal disfarçados com massa e tinta. Nos cruzamentos importantes, nas proximidades do aeroporto, há tanques de guerra, casamatas protegidas por sacos de areia, tropas libanesas ou sírias pesadamente armadas. Há anos não se produz um incidente grave, mas os visitantes são aconselhados a usar bom senso em todas as situações e lugares, tomar precauções, evitar multidões, não dirigir em áreas desertas ou devastadas (medidas, aliás, altamente recomendáveis em qualquer grande cidade brasileira).
Vim para uma reunião que organizamos, a Unctad e outros ramos das Nações Unidas, a fim de ajudar os árabes, inclusive todos os países do Golfo, nas negociações de ingresso à Organização Mundial do Comércio e para formular estratégias negociadoras que melhor reflitam seus interesses comerciais. É significativo como aqui, da mesma forma que no Vietnã, os desafios da globalização começam a mudar as mentalidades mais arraigadas. Falei para um auditório no qual, ao lado de sofisticados homens de negócio libaneses, havia beduínos de albornoz e árabes de turbantes variados.
Nos anos 70 e no meu tempo da rodada Uruguai, com exceção de dois ou três, os árabes não se sentiam em maioria afetados pelo Gatt. O petróleo, o poder da Opep para impor preços lhes bastavam. Todos cortejavam os donos dos petrodólares, a ponto de, numa visita do chanceler da Arábia Saudita, na época de Geisel, o governo brasileiro ir acolhê-lo em peso no aeroporto.
Naquele mesmo período, o Vietnã e seu entorno se afiguravam um caso perdido. Levava-se a sério a “teoria do dominó”, segundo a qual, uma vez completada a comunistização da ex-Indochina, todos os vizinhos cairiam como peças encadeadas: Tailândia, Malásia, Cingapura, Indonésia. Hoje, apesar da crise temporária, esses países estão entre os melhores exemplos de crescimento rápido e redução da pobreza.
É a vez agora dos árabes de não querer ficar à margem da economia e do comércio mundiais. Alguns porque diversificaram a base produtiva com a petroquímica ou por se darem conta de que a Opep só não foi denunciada à OMC como cartel de produtores devido ao colapso sem precedentes dos preços que torna tal medida desnecessária. Outros porque desejam finalmente seguir o exemplo dos demais continentes e edificar seu próprio esquema de integração regional, superando uma herança colonial de falta de contatos comerciais.
Esta região é, de fato, cenário de um grande paradoxo. Tendo sido sempre pela geografia e pela história a ponte de terra que une a Ásia, a África e a Europa, acabou, devido a vicissitudes do imperialismo europeu e a suas próprias mazelas, por tornar-se uma das menos integradas ao comércio mundial (exceto o petróleo) e com apenas 7% de comércio inter-regional. Aqui nasceram as grandes civilizações da Babilônia e do Egito, o início da agricultura, da escrita e da vida urbana, da astronomia e da matemática. Deste berço surgiram as três principais religiões monoteístas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. É tempo de o Líbano, a antiga Fenícia, a terra onde Jesus fez seus primeiros milagres em Tiro e Caná, de o Oriente próximo em geral, voltarem a cumprir sua vocação de promover a fertilização entre culturas e religiões diferentes, desmentindo os profetas do “choque de civilizações”.
Para isso, sente-se aqui, mais do que em qualquer outro lugar do globo, a impossibilidade de separar paz de desenvolvimento, segurança de progresso.
Paz com Israel, mas, também, entre as comunidades. Paz não só como ausência exterior de conflito, mas como sentimento interior de reconciliação e estima. Um dos principais líderes libaneses que visitei chamou-me a atenção para esse ponto; lembrou-me que, apesar de não haver, há 20 anos, guerra entre Egito e Israel, os dois povos não se reconciliaram de verdade. Dizia-me que os libaneses são subestimados às vezes porque gostam de dançar, de uma cozinha requintada e abundante, porque amam a vida. Mas acrescentou: “fazemos isso de noite, mas sobra-nos o dia para a resistência”. Soube depois que fora ele quem, de armas na mão, iniciara a resistência à invasão de anos atrás. Se não me tivessem dito, não sei se teria adivinhado, pois não parecia de forma alguma um guerreiro: em cima de sua mesa de trabalho, sobre cada uma das mesas de apoio, havia rosas vermelhas, amarelas, cujo perfume ele aspirava nas pausas da conversa.
Publicado na Folha de S. Paulo em 25/04/1998.