Passaram já sete anos desde que perdemos José Guilherme Merquior. Uso o verbo “perder” no sentido próprio e não apenas figurado. Da mesma forma que San Tiago Dantas e, mais recentemente, Betinho.
Merquior foi um dos numerosos brasileiros de exceção que a morte nos arrebatou quando mal tinham vivido 50 anos. Todos aqueles que poderiam partilhar a queixa do salmista: “Ele abateu as minhas forças no caminho/ e encurtou a duração da minha vida/ Ó meu Deus: não me leveis já na metade de meus dias”.
O absurdo da morte é maior quando ela destrói vidas breves em plena ascensão, quando apaga a chama antes que ela possa dar mais do que uma imagem pálida de sua luz e calor. Por isso, quando José Guilherme morreu, no início de 1991, lembrei de um túmulo antigo do cemitério de Céligny, perto de Genebra. Nele, um marido inconsolado pela perda da esposa de 20 e poucos anos lança a Deus este grito de dor, de perplexidade, de reprovação: “Senhor, por que tão cedo?”.
Pouco antes do fim, em dezembro de 1990, tomei o trem e fui a Paris ouvir Merquior numa conferência organizada originalmente por Ignacy Sachs para marcar os cem anos da República. Em vez do balanço histórico convencional, José Guilherme resolveu falar da história dos sonhos que, em épocas diversas, os brasileiros sonharam para o Brasil. Foi uma espécie de tipologia dos grandes “projetos nacionais”, que, em francês impecável e articulação fascinante, ele desdobrou aos olhos dos que o escutávamos.
Começando pelo projeto Andrada, da Independência (1820-1830), ele foi desfiando os seis principais esquemas de construção da nação: o projeto liberal-oligárquico (1850-1930), o jacobinismo positivista (fim do século 19), o primeiro período Vargas (1930-1945), o “bismarkismo” moderado de Kubitschek (1955-1960) e a modernização autoritária (1964-1985).
Em traços rápidos, cada modelo era retratado no essencial. José Bonifácio, com o apoio de Pedro 1º, via o futuro do país embasado em três elementos fundamentais: um executivo forte e centralizado, a imigração para substituir a escravatura e o crédito do Banco do Brasil para financiar as correntes demográficas destinadas a modificar a sociedade patriarcal.
Derrotado o ideal de Andrada, afirma-se um projeto liberal oligárquico de preservação da estrutura escravocrata e agrária, possibilitado pela inserção mesma do Brasil no comércio internacional da época e alimentador permanente da desigualdade.
O jacobinismo positivista terá domínio fugaz, até cerca de 1894. Mas dá origem à República, ao federalismo por vezes extremado, concebe mesmo um projeto social inspirado na “sociocracia” de Comte e ameaçador para a oligarquia rural.
É esta, porém, que rapidamente prevalece. A tal ponto que Merquior lembra o ensinamento de Sérgio Buarque de Holanda: não foi sob a monarquia mas sim na República Velha que se estabeleceu de fato o Império dos Fazendeiros.
O projeto getulista é comparado ao de Napoleão 3º, no Segundo Império francês: expansão e reforço do Estado centralizado, organização burocrática multiplicadora dos controles, industrialização, esforço sistemático de integrar o operariado urbano por meio da sindicalização e da legislação social.
José Guilherme qualifica o quinquênio de Kubitschek de “enérgico, brilhante, criador”. Uma espécie de “bismarkismo” moderado, sustentado num Estado dirigente e num pacto de dominação modernizadora de alguma analogia com as revoluções industriais alemã e japonesa no século passado. Seu pecado capital foi, porém, ter dado início à inflação crônica. Esta iria exacerbar tensões e conflitos que conduzem à modernização autoritária dos militares. A intervenção militar é, para o autor, o resultado de um impasse político originado em profundas desigualdades sociais mas que se manifesta sobretudo pela falência do modelo democrático da Constituição de 1946, pelo divórcio entre Executivo e Legislativo e pelo fracasso do populismo.
A tentativa de captar o que vem depois é mais um esboço, em parte já envelhecido. Nem o mais relevante aqui é discutir se a periodização de José Guilherme, as características que ele atribui aos projetos são as únicas possíveis ou se poderia fazer melhor.
A meu ver, o interesse maior está no que ele diz sobre os “principais desafios do futuro imediato”. O primeiro é a “refuncionalização” do Estado, isto é, a transformação de seu papel de “produtor” no de “promotor” e “protetor”. Promotor de estratégias globais de desenvolvimento pois, como afirma, “há uma diferença muito grande entre os sonhos de alguns neoliberais de quase-eliminação do Estado e a reorientação do mesmo Estado para funções estratégicas dos quais dependerá o futuro de nossa economia e sociedade. Não se pode simplesmente demolir o Estado e já não falo apenas do Estado como ordem jurídica… Falo também do Estado Dux” (isto é, líder, condutor).
Igualmente “Estado protetor dessas imensas camadas da população (…) ainda sem teto, sem alimentação adequada, sem escola e sem acesso à Justiça, quarta dimensão da crueldade social no Brasil”.
Merquior termina por lembrar que o primeiro século da República foi marcado, entre nós como nos nossos vizinhos, pela problemática da identidade nacional. Agora, contudo, deveríamos passar da problemática da identidade à da integração com seu tríplice objetivo: integração das massas em níveis mínimos de conforto e prosperidade, integração latino-americana e integração às correntes e ao dinamismo da “economia-mundo”. A articulação desses três níveis vai determinar o que há de melhor nas preocupações e angústias mesmas do espírito brasileiro neste momento.
Angústias e preocupações continuam conosco. Só não temos mais para ajudar-nos a dissipar essas brumas a luz da inteligência de José Guilherme, sua verve e ironia, sua paixão pelas idéias e pelo Brasil, sua cultura assombrosa.
No desconsolo dessa perda sem remédio, abraço Hilda e seus filhos comovidamente.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 28/02/1998.