Foi assim que se autodefiniu Celso Furtado na capital de seu Estado, a Paraíba, no meio do ciclo de estudos sobre sua obra, iniciado no Recife e culminado esta semana em São Paulo. O cacto é planta áspera e austera, mas oferece às vezes flor de beleza inesperada e seiva generosa para refrescar a sede em tempos de estiagem brava, como a que vivemos.
Só a palavra apoteose pode descrever a volta de Celso à sede da Sudene, de que fora expulso pelos militares, em 1964. Seu velho companheiro, Francisco de Oliveira, emocionou os presentes com a evocação do sonho que podia ter sido e que não foi, pela chamada nominal dos que foram tombando ao longo do caminho. Cristovam Buarque, em momento de inspiração, levantou o auditório com sua exortação a reatar um desenvolvimento comprometido com os pobres e vulneráveis, brotando da fonte criativa da cultura brasileira.
Mas a peça de resistência da sessão inicial do seminário, dedicada à contribuição de Celso Furtado ao pensamento econômico latino-americano, foi uma apresentação articulada e cuidadosa feita pelo economista da Cepal Ricardo Bielschowsky, autor de “Pensamento Econômico Brasileiro”, possivelmente o estudo mais sólido de que dispomos sobre “o ciclo ideológico do desenvolvimentismo” (subtítulo do livro).
Seu ponto de partida foi mostrar como o então jovem ex-tenente da Força Expedicionária Brasileira iria colaborar com a formulação da teoria estruturalista de Prebisch e da Cepal, aportando-lhe sobretudo instrumentos de análise histórica. Esse trabalho de “independência teórica na tarefa de analisar as realidades latino-americanas” levaria, anos mais tarde, aos dois principais livros de Furtado, “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento” e “Formação Econômica do Brasil”.
Argumenta o primeiro que o subdesenvolvimento não é mera etapa do desenvolvimento pela qual passam todos os países, conforme afirmava então o conhecido livro de Rostow “Stages of Growth”. Trata-se, ao contrário, de um processo em si mesmo, fenômeno autônomo resultante do impacto histórico do capitalismo industrial sobre estruturas arcaicas que pode tender a se perpetuar. “Obra-prima do estruturalismo brasileiro”, o segundo deve ser visto muito mais como “um ensaio de interpretação histórico-analítica do que como uma pesquisa histórica de grande profundidade”, nas palavras do expositor. O próprio autor, aliás, advertia, na introdução, que seu objetivo não era reconstituir os eventos históricos, mas descortinar uma perspectiva mais ampla ao leitor desejoso de um primeiro contato com os problemas econômicos do país.
Nesse sentido, “Formação Econômica do Brasil” é de inclusão obrigatória na lista dos livros indispensáveis para compreender o Brasil, os clássicos de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, aos quais se devem acrescentar, sem hesitação, não só o trabalho de Furtado, mas também “Os Donos do Poder”, de Raimundo Faoro. Francisco de Oliveira assinalou mesmo um aspecto original. Enquanto as obras anteriores explicaram e “construíram” o país do passado, a de Celso explicava e “construía” o Brasil dos seus dias: era contemporânea de sua própria construção.
Ninguém, na verdade, tem sido mais capaz de captar o significado oculto a muitos outros de fenômenos como a globalização econômica. Já em 1992, indagava ele em “A Construção Interrompida”: “Como desconhecer que o esvaziamento dos sistemas decisórios nacionais será de consequências imprevisíveis para a ordenação política de vastas áreas do mundo, em particular para os países subdesenvolvidos de grande área territorial e profundas disparidades regionais de renda, como é o Brasil?”.
Alertava, então, que, em país ainda em formação, “a predominância da lógica das empresas transnacionais na ordenação das atividades econômicas conduzirá quase necessariamente a tensões inter-regionais, (…) à formação de bolsões de miséria, tudo apontando para a inviabilização do país como projeto nacional”.
Em “Reflexões sobre a Crise Brasileira”, texto que leu em São Paulo na quarta-feira, volta a advertir que “países com acentuadas disparidades sociais são os que mais sofrerão com a globalização”, pois “poderão desagregar-se ou desligar para regimes autoritários como resposta às tensões sociais crescentes”.
No livro de 1992, a solução para o problema era claramente indicada: “Um sistema econômico nacional não é outra coisa senão a prevalência de critérios políticos que permitem superar a rigidez da lógica econômica na busca do bem-estar coletivo”. Em aplicação da tese, aconselha agora a “voltar à idéia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia”. O maior obstáculo seria inverter o processo de concentração de renda, “o que somente será feito mediante uma grande mobilização social”, o oposto, portanto, de governos desmobilizadores, como não podem deixar de ser os que se apóiam na conciliação das elites.
A capacidade de antecipação de Furtado e sua profundidade avessa a modismos superficiais e pretensiosos provêm de outro aspecto apontado no seminário pelo professor Octávio Rodriguez. Rejeitando o reducionismo econômico, ele insere firmemente no coração do processo do desenvolvimento as dimensões da cultura e da ética. Não como elementos não-essenciais, a ser adicionados a posteriori, mas como princípios orgânicos cuja ausência desfigura e, em última análise, inviabiliza o verdadeiro desenvolvimento. É aqui que o cacto se converte em flor e o estoicismo do sertanejo de Pombal, o estilo austero, sem gordura, de “faca só lâmina”, deixa aparecer o que está por trás disso tudo: o amor intenso pelo povo brasileiro, amor solidário com seus sofrimentos e orgulhoso de sua capacidade de criar cultura e beleza, apesar das privações. Povo que reconhece em Celso um dos seus, como se viu na consagração das ovações que em todas as etapas desse ciclo de homenagens acolhiam a simples menção do seu nome. E que aplaudiu com entusiasmo as palavras com que ele concluía, dia 14, suas reflexões na Universidade de São Paulo: o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa sociedade mais justa e preservar sua independência.
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 18/06/2000.